Caça aos ovos
Hoje passei por um antigo bosque que teve grande importância em minha juventude. Era um lugar onde eu brincava, onde passeei com minha primeira namorada, e outros momentos memoráveis. As árvores que antes existiam aqui, agora não passam de tocos fincados no chão carbonizado. Sentei-me em um deles e chorei. As lembranças da infância começaram a vir à mente sem controle. Sempre fui um homem de manter a visão no futuro, pois o passado não pode ser consertado, o porvir sim.
Acho que a lembrança que mais me doeu hoje foi a daquele dia. Estávamos eu, meu pai, e mais um grupo de caçadores, em uma velha cabana de madeira afastada da cidade, onde estavam expostos vários rifles de caça de tipos diferentes, revólveres, machadinhas e até mesmo uma pequena quantidade de granadas. Não era algo padronizado, embora fosse algo oficial. A primeira linha de defesa contra os ovos eram pessoas de cada cidade que tivessem idade suficiente. Eram responsáveis por caçar e exterminar qualquer ovo, onde quer que estivesse.
Essa caçada era realizada, vejam vocês, no domingo de páscoa. Os motivos disso ninguém nunca soube, mas era o único dia em que se tinha certeza que os ovos já haviam surgido e era o último dia no qual surgia algum ovo. E de onde eles vinham? Mais questões sem respostas. Cientistas de todo o mundo tentaram, mas nada foi descoberto.
Depois que nos armamos na antiga cabana de madeira, saímos pela madrugada. Os novatos, como eu era, iam em dupla com um adulto mais experiente. Eu ia ao lado de Andréia, que já tinha seus 25 anos e era considerada uma das melhores caçadora de ovos da nossa cidade.Ficamos responsáveis por patrulhar a ala mais a sudoeste da cidade. Coincidentemente onde eu morava. Seguimos pelas ruas estreitas, mas não eram nosso foco. Nessas ruas os ovos sempre ficavam bem expostos e fáceis de encontrar. Uma ou duas machadadas eram o bastante para destruir os malditos ovos, deixando apenas o embrião alado para trás, em uma poça de líquido amniótico avermelhado. O meu trabalho naquele dia era basicamente recolher e finalizar a possível vida desses embriões. O procedimento era rápido: uma facada no que deveria ser o pescoço da criatura. Mas não pude deixar de golfar nas duas primeiras vezes metendo a mão naquela gosma escrota para recolher no saco de lona que eu carregava.
Naquele ano tinha uma quantidade anormal de ovos. No meio da rua achamos pelo menos vinte ovos.
— Esse ano tá foda… acho melhor a gente agilizar. As ruas são as mais fáceis de limpar, mas também são um indicador de como tá a situação em outros esconderijos.
Andréia vez ou outra soltava uma dessas pílulas de conhecimento, aos quais eu escutava atentamente carregando o maldito saco de embriões, que pingava a gosma que eu tanto odiava.
Com a rua limpa, começamos a buscar nos esconderijos. Atrás de latas de lixo, becos, quintais… a maior parte desses ficava ao alcance e eram finalizados com a machadinha.
— Cada bala é na conta da cidade. Não tem bala infinita. Se liga e só usa quando precisar.
Sacudi a cabeça concordando, mas admito que passei o tempo inteiro querendo ver Andréia usando aquele rifle que carregava nas costas. Para minha sorte, encontramos um ovo em uma calha. Ele estava meio preso, entre o telhado e a estrutura metálica. Vi Andréia tirar o rifle das costas, mirar e acertar em cheio o ovo, transformando ele em uma granada de casca, gosma e vísceras do embrião.
— E se for atirar, evita destruir qualquer coisa — ela disse, apontando para a telha da casa, que ficou intacta — Todo mundo vai me perdoaria se eu errasse, já que é uma telha velha trocada pela sobrevivência humana. Só que vamos ser educados e evitar ao máximo.
Dessa vez eu só fiquei boquiaberto, abismado com quão certeiro foi aquele disparo. Não havia trabalho para mim daquela vez.
Não levamos a noite toda. No começo Andréia pegou leve comigo e foi mais devagar, mas conforme ela foi percebendo a gravidade da situação naquele ano, ela foi acelerando o processo e antes que eu pudesse juntar os restos do chão ela já estava pulando um muro para outro quintal para exterminar outros ovos. Admito que nessa pressa eu posso ter deixado de finalizar alguns dos embriões para ter tempo de acompanhar ela. Antes que a noite se encerrasse, já havíamos terminado. E o resto da noite passamos fazendo um pente fino na nossa área. Na primeira vez que voltamos para conferir, ainda achamos um ou dois ovos, mas já na terceira ela começou a relaxar, pois não havia mais sinais de ovos. Mesmo assim, sempre sugeria uma nova ronda.
Apenas paramos quando o dia já amanhecia e voltamos à velha cabana no bosque. Eu com um saco murcho e úmido quase arrastando no chão e Andréia com a face que era um misto de inquietude e exaustão. Vinha carregando o rifle na mão, segurando ele com força. Queria dizer algo para ela, algo que a acalmasse, mas não conseguia sequer me aproximar, então me mantinha mais distante enquanto ela caminhava à minha frente.
Quando chegamos, vimos uma fila pouco distante da cabana. Olhei para Andréia e ela, muito silenciosa, disse com o olhar que era para lá que eu deveria ir. Ainda olhei para trás a tempo de ver ela entrando na cabana.
A fila onde eu estava era para jogar os restos recolhidos em uma lata de lixo. Uma pequena parte daquilo iria para pesquisa científica a respeito da espécie e a outra parte seria incinerada. A minha vez chegou rápido. Esvaziei a sacola e vi os corpos fibrosos caindo sobre um monte do que já havia sido jogado ali. Enquanto sacudia o saco para que até o último corpo fosse despejado, olhava para aquelas criaturas, que nem de longe pareciam tão ameaçadoras quanto eram pintadas pela TV e pelos mais velhos.
Saí dali sem saber muito bem o que fazer e sem ninguém para me orientar. Fui em direção à cabana avisar à Andréia que tinha feito a tarefa que tinha me dado. Quando me aproximei, ouvi um vozerio. A voz da minha tutora se elevou acima de todos os outros e foi quando eu cheguei na porta, dando espaço para que as pessoas que terminavam de despejar os corpos pudessem entrar. Eu mesmo não me senti confortável para entrar naquelas paredes, então me mantive na porta.
— A situação desse ano não foi normal. Tem cada vez mais ovos e fica cada vez mais difícil ter certeza de que demos cabo de tudo. Não queremos ter outro incidente como de cinquenta anos atrás — Andréia dizia — Bastou um deles. Um único desgraçado ficar vivo. Quanto mais ovos, mais
Continuou seu discurso sobre a importância de mantermos vigia constante para verificar o surgimento dos ovos. E enquanto isso eu ia embora com “cinquenta anos atrás” ressoando em minha mente e equalizando com “bastou um”. De repente me lembrei daqueles embriões que não finalizei devidamente. Seria possível um continuar vivo? Não sabia, mas tinha a leve impressão de ver um deles respirando na lata de lixo.
Isso continuou em minha mente pelo resto do dia, e habitou parte dos meus sonhos também, mas acabou sendo esquecido, afogado em minha vida cotidiana por um mês.
Foi quando ele surgiu. Não se soube de onde, mas na minha cabeça aquele maldito que veio devastando tudo como um rolo compressor era um dos embriões que respirava naquela lata de lixo. Engoli aquilo calado enquanto a cidade inteira se juntava na tentativa de dar um fim na criatura.
Um único movimento de uma dos seus braços ou patas era capaz de devastar um quarteirão inteiro. Perdi várias pessoas queridas para esse incidente, incluindo Andréia que morreu partida em dois simplesmente por estar no caminho do balançar da cauda da criatura. No final das contas o exército veio para evitar que o incidente municipal se tornasse regional ou pior ainda.
Sobrevivi pois fugi como um covarde da luta. Mantive silêncio sobre minhas suspeitas de que fosse o culpado daquilo, e hoje em dia isso não mais me atormenta. Pode ter sido eu, pode ter sido algum ovo esquecido por um caçador menos minucioso que Andréia, pode ter sido um ovo que surgiu depois, ou um ovo que sequer estava na cidade. No fim das contas, isso não importa. Como eu disse: sou um homem que entende a irremediabilidade do passado.
Mesmo assim, essas memórias parecem estar no ar desse bosque, onde eu vim participar da minha primeira caçada. Esse bosque que hoje em dia não passa de tocos e cinzas.
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