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Mostrando postagens de outubro, 2022

Memórias ao ar

Mofo e poeira lhe estapearam as narinas quando abriu aquela caixa. Sabia o que tinha ali, contido entre aquelas paredes de papelão. Na verdade, sabia mais. O mofo e a poeira eram partículas de memória, que chegavam até ele enquanto desencaixava seus velhos cadernos. Diários, anotações, ideias, sentimentos, começavam a evaporar e grudar em sua pele. Sorriu enquanto folheava aqueles papéis carregados de tempo, com as doces lembranças voltando à sua mente. Saudades de um passado que não era mais que isso. Lembranças e pó. Espirrou. Seu corpo rejeitava as memórias como intrusos. Não faziam mais parte dele. Guardou tudo novamente e empurrou a caixa para baixo da cama, onde era seu lugar. Seu nariz coçava e agora precisava de um banho para lavar o corpo daquela nostalgia que grudava em sua pele.     Texto escrito na Oficina de Escrita Criativa da III Semana Nacional do Livro e da Biblioteca, organizada pela BCCP, no dia 25 de outubro de 2022.

Elasticidade

 O órgão mais elástico do corpo humano é certamente o cérebro. Pode se expandir e buscar sentidos universais, ou pode recolher-se e se contentar com a mais superficial das realidades. Digo isso pois, uma noite dessas, me peguei admirando as poucas estrelas que pontuam o céu noturno urbano, coisa que costumo fazer sempre que posso. Parei sob o abóbada escura a admirar pontos cintilantes. Involuntariamente meu cérebro fugiu do controle. A ficha de que cada um daqueles pontos minúsculos podiam ser sistemas estelares maiores que o sistema solar no qual eu vivo caiu. O tamanho do universo se tornou espantoso, assustador e algo a ser temido; minha insignificância foi esfregada na minha cara. Belo e triste. Nada importa. Continuei ali, olhando para cima, até que meu cérebro se recolheu. Voltei à terra, pés firmes no solo e um céu pontilhado sobre minha cabeça, nada além disso. Me vi mais uma vez perto dos meus amigos e pessoas importantes. O peso da minha vida se inflou, as responsabilida...

Enquanto não acaba

No meio de uma risada, originada por uma anedota boba que surgiu à mesa no meio daquele grupinho de pessoas, o olhar d’Ele passou por Ela e ali se paralisou. A gargalhada selvagem minguou até um suave sorriso, não mais sustentado pelas piadas, mas alicerçado em memórias que lhe surgiam na mente. Um passado se desenrolava em seu cérebro, belo em sua própria simplicidade, como um dia sem nuvens na qual se admira o sólido azul celeste. Ele flagrou-se banhado em uma viscosa nostalgia, daquelas que acompanham o fim de qualquer jornada. Aquela cena, vários amigos queridos ao seu redor na mesa, lhe era muito familiar, embora alguns rostos fossem novos e alguns saudosos não mais fizessem parte da cena — ficaram pela metade do curso. Ao redor dele, todos eram importantes à sua maneira, e amados de uma forma particular. Ela, porém, era importante em todas as maneiras e amada particularmente. N’Ela se alicerçava tudo. Tudo começou com Ela. Seu sorriso derreteu ao ver o rolo de memórias chegan...

Outros cinzas

Hoje foi um dia diferente. Há mais tempo do que me lembro, estou triste. A tristeza de hoje, no entanto, me fez muito feliz, o que foi um choque ao me pegar sorrindo por sofrer. Subitamente compreendi que a melancolia não se trata de uma massa cinza e uniforme que se acumula sobre nossas vidas. Mesmo o cinza tem suas nuances alegres. Senti hoje a dor do desejo. Sendo mais específico, a dor do desejo por alguém, que é totalmente diferente da dor do amor. Ela é a dor de se ver acorrentado logo ao lado do seu objeto de desejo, seja quem for, por duas correntes cruzadas. A primeira autoimposta, com elos de insegurança e nervosismo. A segunda é a imposta pela situação. Me senti derrotado. Isso me doeu. Essa dor semeou tristeza. A tristeza que brotou me iluminou. Pela primeira vez em muito tempo estou triste por algo que realmente importa. Não um peso atirado sobre mim pelo mundo, mas um espinho que eu mesmo decidi colocar na minha carne. Termino o dia mais feliz, mesmo que triste, e nem u...