Cinco, dez ou vinte e cinco


Dentre as experiências requentadas que a retomada às atividades presenciais me propiciou, uma delas, e talvez a mais significativa, foi andar de ônibus. Certo dia eu entrei e sentei em uma cadeira próxima à janela, perto do fundo do veículo; algumas paradas à frente subiu um sujeito com uma mochila jeans fechada. A população do ônibus, treinada por anos e anos de jornalecos pinga-sangue, e séculos de racismo, se retesou nas cadeiras e escondeu seus pertences de valor — smartphones — dentro das calças. O maltratado jovem, que mais aparentava a meia idade, passou pela catraca, abriu a mochila revelando que seu conteúdo eram apenas pacotes de amendoim e os saiu distribuindo de mão em mão. Enquanto passeava no corredor do ônibus, contava a ensaiada história sobre os benefícios do amendoim para o coração, como tinha gorduras boas e até sobre ser afrodisíaco — e nem me pergunte o motivo para alguém comprar um afrodisíaco dentro de um ônibus —, logo passou recolhendo e dizendo que também aceitaria qualquer moedinha de cinco, dez ou vinte e cinco centavos. Tirei uma do bolso sem sequer olhar o seu valor e então tudo estava em silêncio novamente, apenas com o som da respiração carbônica de Fortaleza saindo dos escapamentos dos carros.

Não demorou até entrar um novo vendedor. Esse com aspecto derrubado, de alguém que a vida não teve piedade, trazia uma sacola de bombons na mão que saiu lentamente distribuindo entre os passageiros, dizia que aquele bombonzinho já era nosso, e que ele só pedia uma ajudinha de cinco, dez ou vinte e cinco centavos. Como negar? Eu ganhei um doce, afinal. Algumas pessoas ajudaram e o sujeito sentou-se algumas cadeiras à minha frente com a sacola entre as pernas.

Poucas paradas se passaram, e eu mal tinha acabado de pôr o bombom na boca, quando um novo vendedor subiu. Segurava uma grade com seus produtos pendurados e usava um grande óculos escuro. Chegou cheio de atitude, falando alto, rápido e eloquentemente, anunciando que vendia fones de ouvido, carregadores, carteiras, capa de celulares, adesivos, e eu comecei a imaginar que se você pedisse um detonador de C4, ele tiraria um dos bolsos do calção e lhe venderia por um precinho camarada. Pediu para que, quem não comprasse nada, lhe desse alguma ajuda para a próxima passagem; nada demais, apenas cinco, dez ou vinte e cinco centavos.

Quando esse último vendedor desceu, avistei o meu destino: a bela e recém-reformada Biblioteca Pública Estadual do Ceará, carinhosamente chamada de BECE, com seu vermelho e amarelo vibrantes e estrutura de primeiro mundo. Recomendo a visita. Desci e conheci o lugar, passeando entre os livros de ficção e técnicos e desfrutando do respeito tácito ao silêncio que uma biblioteca impõe. Voltar aos ônibus depois disso foi um choque, não apenas térmico — já que a biblioteca é climatizada até para um pinguim —, mas também social.

Andando por Fortaleza em um ônibus me deparei com um retrato dela no pós-pandemia. Muitos pontos turísticos e um belo lugar para visitar e conhecer; bem como para dar fim naqueles trocados que você tem guardado em algum lugar.

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