Uma Ligação

A porta se fechou e um Cauã fatigado buscou o conforto do sofá de sua sala. Aquele era o seu ritual há tanto tempo que poderia encontrar o móvel estofado de olhos fechados.

Ficou ali recostado um tempo, sentindo os músculos finalmente relaxando. O trabalho na obra estava atrasado e o mestre de obras estava sendo posto contra a parede pelo engenheiro, portanto todos os trabalhadores estavam sendo colocados contra a parede também. Todos estavam sendo espremidos para trabalharem o dobro, o que os estava deixando quebrados, inclusive Cauã, que mal sentia os braços.

Quando seu corpo começou a dar sinais de recuperação ao menos superficialmente , ele começou a pensar em cuidar da sua segunda necessidade mais urgente.

Que fome desgraçada…

Levantou-se devagar e nesse ritmo foi até a cozinha, onde abriu os armários em busca de algo rápido, não estava com cabeça para cozinhar no momento. Caçou entre pacotes arroz, macarrão, alguns temperos e acabou por encontrar um pacote de biscoitos de sabor coco que pareceram mais que o ideal para uma refeição balanceada.

Com o pacote de biscoito nas mãos, ele foi até o quarto e pegou um livro que repousava no guarda-roupa em cima de uma pilha de bermudas jeans. Voltou para a poltrona com seu livro em mãos e comendo biscoitos com a outra.

Pouco tempo depois suas pálpebras pesaram, seus braços penderam e o livro caiu em cima da sua barriga enquanto um monte de biscoitos se espalhavam no chão. O rosto tensionado pelas emoções que o texto estava causando, agora exibia uma plácida expressão de serenidade.

Não passavam das onze da noite quando o celular tocou alto em seu bolso. Cauã acordou quase com um salto, derrubando o livro que repousava sobre sua barriga. Ele bocejou e esperou que o celular desse mais dois toques para poder atendê-lo, talvez a pessoa desistisse. Voltou a sentar-se e atendeu..

Alô disse com uma voz preguiçosa e propositalmente desinteressada.

A-alô disse uma voz trêmula no outro lado da linha que fez Cauã tremer.

Com que eu falo?

Aqui é a Aline.

Aline…? pensou por um minuto Acho que a gente não se conhece.

N-não, não, a gente não se conhece.

E você quer falar com quem? perguntou, com a desconfiança transbordando na voz.

Com qualquer um… eu só…

Olha, eu não tô entendendo nada, acho que foi engano. Vou desligar.

Por favor, não desliga — a voz da mulher ficou esganiçada e Cauã teve a súbita impressão de que ela havia começado a chorar — Tem uma… uma mulher aqui na janela da minha casa. Ela tá olhando para dentro. Olhando pra mim…

Por que você não liga para a polícia?

Eu tentei! Tentei. Tudo o que eu escuto é um chiado. Liguei também para todos os meus parentes, familiares, amigos, o desgraçado de Reginaldo e nada!

E como foi que você conseguiu o meu número.

Não sei, eu… eu não sei. Só fui digitando números de telefone até alguém atender.

Como é mesmo o seu nome? — ele disse depois de um longo suspiro.

Aline.

A voz dela saía tremida e muitas vezes abafada pela própria respiração no microfone do celular.

Aline, como é essa mulher na sua janela? Cauã disse.

A superfície do seu consciente gritava, arrogante, que aquilo não passava de um trote de algum engraçadinho. No entanto, um arrepio na parte de trás da sua cabeça era como uma sutil mensagem de seu inconsciente, dizendo que aquilo podia ser real; era o que o mantinha na linha sem desligar a ligação.

Ela é… muito magra — a mulher disse, fazendo uma pausa para engolir — Os olhos dela parecem vidrados, talvez seja alguma drogada, eu não sei. Ela não pisca. Fica só olhando. Tá vestindo uma roupa esquisita. Meio suja. Meio rasgada. Não se mexe. Parece que… AI MEU DEUS, tem sangue na roupa dela… a mulher começou a chorar e a soluçar no telefone.

O suave arrepio na nuca de Cauã lhe desceu pela coluna, o fazendo levantar da cadeira com a súbita inquietação.

Olha, se isso for um trote…

N-não… por favor eu não quero ficar sozinha…

— Você sabe o quão surreal isso parece, não é senhora? — disse Cauã

— Oi? Eu… ouvindo… MEU… mexendo — a ligação começou a falhar por alguns momentos, quando voltou ao normal, a mulher soluçava e chorava alto.

— O que aconteceu!? — Cauã disse ao telefone com a garganta apertada.

— Ela se mexeu… — a voz da mulher estava mais calma e seu choro havia parado, mas sua respiração ainda parecia uma pequena tempestade ao telefone — Colocou uma mão na janela e… acho que tentou falar.

Àquela altura, Cauã já não sabia o que acreditar. O arrepio que sentia o impedia de ouvir a consciência berrando que ele não estava em um filme.

— Olha, Aline. A gente vai conversar. Eu não vou te deixar sozinha com essa louca na sua janela.

— Obrigada… você não imagina o medo que eu tô sentindo — ela disse, ensaiando uma risadinha nervosa.

— Mas então, Aline? O que você faz?

Eu sou advogada.

— Nossa, hein. Devia te chamar de Doutora Aline?

— Meu Deus, por favor não.

Os dois riram.

— E você, Cauã? — ela perguntou — Trabalha em quê?

— Eu? Na construção civil.

— Nossa, deve ser pesado — ela fungou.

— Eu te respondo isso quando voltar a sentir meus braços. Você tem filhos?

Dois, mas já são adultos. Eu mal vejo eles.

A voz de Aline ia, a cada pergunta, assumindo um tom normal e a conversa parecia cada vez mais casual à vista de Cauã — apesar acontecer às portas da meia-noite.

— Só um minuto, eu preciso ir no banheiro — Aline disse.

Cauã ouviu ela dizendo mais alguma coisa, mas o chiado na linha não permitia que ele entendesse.

— Aline? Aline!?

Nenhuma resposta do outro lado, até que a voz ofegante de Aline surge novamente.

— Não posso parar de falar… não posso parar de falar… — ela repetia, mas não para Cauã.

— O que aconteceu? Aline?

— Oi? Não importa o que acontecer, não para de falar — Aline aparentava ter o choro preso em sua garganta. Cauã já ia repetir a pergunta a Aline, quando ela interrompeu suas intenções — Eu sai e a ligação caiu por uns instantes. Ouvi um barulho. Quando voltei a vi batendo com a cabeça na janela. O vidro tá todo rachado.

Cauã voltou a caminhar em círculos pela sala sem perceber. A voz de Aline, no entanto, parecia diferente. Esse choro preso e sua garganta aparentava dar à sua voz uma determinação, uma vontade de viver, que Cauã não havia identificado momentos atrás. Uma determinação de quem sabia que veria o próximo dia.

O relógio de pulso de Cauã apitou, avisando que um novo dia estava entre eles.

— Não para de falar comigo. Parece que essa coisa só se mexe quando a ligação tá prestes a cair.

— Coisa?

— Você não tá vendo ela agora… ela tá debochando de mim. Sorrindo. O sorriso dela… vai de orelha a orelha.

Subitamente Cauã paralisou no meio da sala. Um medo daquela imagem tomou conta dele, e parecia que de qualquer sombra ou canto escuro aquela imagem que ele formou na cabeça poderia brotar. Imaginou uma boca daquele tamanho sendo recheada com sua cabeça; a mandíbula e o maxilar se encontrando com um único movimento e sua cabeça explodindo como uma melancia.

— Ainda tá ai, Cauã?

— S-sim… — agora, a voz de Cauã estava trêmula.

— Que bom.

Um silêncio rápido se formou.

— Espera, porque ela tá se mexendo? — de repente Cauã ouviu um grito que Aline deu longe do celular — Olha aqui! Eu tô falando no telefone ainda! Não acabei minha ligação!

Um bipe surgiu na linha.

— Puta que pariu!

— O que foi, Aline? — a boca de Cauã era a única parte do seu corpo que se movia voluntariamente. Não passava de uma estátua trêmula no centro da sala.

— Meus créditos… tão acabando… PUTA QUE PARIU! — ela gritou mais uma vez longe do celular — Mas não vai ser hoje. Hoje não. A desgraçada tá girando a maçaneta da porta. Coitada — disse com uma risada de satisfação — Essa merda tá tranca…

— Aline?

— Ela destrancou. De algum jeito ela destrancou. Como que ela pode andar assim? Sai daqui!

Cauã então ouviu o barulho do celular batendo em algo. Não teve forças para dizer nada.

— Eu corri para o meu quarto e me tranquei.

— E aí?

— Até agora nada.

— Passos?

— Aquela coisa não caminha. Você não viu. Ela tá se mexendo porque a ligação tá perto de cair.

Mais um bipe invadiu a linha.

— Olha, eu vou desligar um segundo e ligar para você em seguida, certo? Se não a ligação vai cair.

— Não, por favor, não desliga! Já que esse (ela tá mexendo na maçaneta da porta do meu quarto) vai ser o fim, eu só não quero estar sozinha.

— Não vai ser o fim! — respondeu com voz firme.

— Faz o que eu tô pedindo, tudo bem? Ela tá olhando pra mim, se aproximando. A bo…

Algo interrompeu. Um som que fez o cérebro de Cauã parecer ter virado mingau. Afastou o telefone do ouvido e sentiu o mundo ao redor girar.

Quando finalmente recuperou o equilíbrio, colocou o telefone de volta no ouvido.

— Aline! Aline!? Me responde, por favor. Vai pra um canto com… com… mais sinal. V-vai, logo se não… se… — caiu em si e olhou para o celular. A ligação já era.

Num ímpeto e entre lágrimas que pareciam bombeadas pelo seu coração que quase rasgava sua caixa torácica, e com a adrenalina correndo em seus vasos sanguíneos, ele foi no histórico de ligações e refez a chamada. Uma voz feminina respondeu, mas não a que ele esperava.

O número que você ligou não existe.

Disse a voz robótica.

O braço de Cauã tombou e o celular caiu no chão. Passou a noite em claro discando aquele número e apenas recebendo a mesma mensagem de antes que esfregava em sua cara que tudo aquilo não havia passado de coisa da sua cabeça. Estranhamente ele tinha uma clara visão de Aline, A Advogada, em sua mente.

Em certo momento, a realidade se tornou mais dura, não aceitava mais que coisas como aquela tivesse acontecido. Cambaleante e com aquele som inumano que havia escutando ainda ecoando na sua mente. Deitou na cama e dormiu. Logo, aqueles momentos seriam confundidos com um sonho, uma obra de seu inconsciente, sua mente lhe pregando uma peça. Adquiriria dessa maneira a efemeridade do sonho. Pela manhã, ele nem lembraria o nome de Aline. Ninguém lembraria.

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