[Crônica] Fluxo


No meio-fio da rua, entre o branco caiado do gelo baiano e o negrume do asfalto, logo se formou um pequeno “rio”, bastou cair dez minutos de chuva constante e suave. Um pequeno corpo d’água que avançava com sua cor amarronzada, indo do lado mais alto da rua ao mais baixo, dando orgulho ao homem debaixo da macieira.

Em uma janela gradeada no segundo andar de uma casa, Rogério, um senhor de cabelos da cor de algodão, observava a chuva cair; viu o pequeno córrego se formar, tomar corpo — com todas as corredeiras e quedas d’água que as irregularidades do meio-fio geravam —; viu também uma humilde folha, vinda de sabe-se lá onde, que boiava solitária, tal qual um navio sem tripulação, do qual a água era capitã e navegadora.

No início da rua as águas eram tranquilas, agitadas apenas pelo suave salpicar de gotas de chuvas na sua superfície. A folha então vibrava a cada impacto, sem nunca se abalar.

“Provavelmente ela agora imagina que isso é o mais difícil que ela vai enfrentar”, ele pensou enquanto observava a folha descendo as águas e em seguida olhando para o que ela enfrentaria em seguida.

A voz de seu pensamento mal se calou e a folha entrou em uma corredeira criada por alguns pedaços de lixo pesados o bastante para resistirem à correnteza. A pequena folha foi jogada de um lado para o outro e Rogério pensou que ela talvez fosse afundar em algum momento, mas ela resistiu firmemente.

O velho Rogério imaginou se a essa altura a folhinha não gostaria de voltar para as suaves águas do alto da rua. Infelizmente, para ela, a água corria em uma — e apenas uma — direção.

Ao deixar as corredeiras para trás, a folha entrou em outra zona de calmaria, da qual Rogério, devido sua visão privilegiada, conhecia bem a efemeridade. Alguns centímetros à frente ficava uma gigante — pelo menos em proporção à folha — queda d’água. A folha então caiu, e o volume de água que vinha imediatamente atrás dela caiu em seguida, a empurrando até tocar a superfície do cimento que a água barrenta acobertava. A folha deve ter passado uns dez segundo fora da visão de Rogério, apenas para ressurgir centímetros à frente.

“Você não desiste fácil, né?”, pensou aliviado ao ver a pequena folha surgir na superfície.

Seguiram-se então uma sequência de corredeiras e cachoeiras; além, claro, de um ou outro período de bonança. Isso durou até a folha alcançar seu destino final. Uma queda d’água grande o bastante para fazer a folha — já bastante maltratada a essa altura — afundar e nunca mais retornar à superfície.

O velho engoliu em seco e fechou a janela.

Olhou para o quarto onde estava e sorriu.

— Acho que ela devia se chamar Rogério.

E saiu andando, arrastando os chinelos em direção à cozinha para tomar um café e aquecer os ossos.

Comentários

  1. Muito bom 👏👏, continue assim indepente das dificuldades do dia a dia não pare de escrever, tamo junto mano 💪

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    1. Obrigado pelo comentário. São comentários como esse que dão estímulo para continuar divulgando os textos. :)

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  2. Descobri que sou uma folha.

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