O Quinze de Maio
O casal assistia tranquilamente enquanto a cabeça falante em um
aquário fazia uma piadinha de cunho sexual com uma das participantes
do jogo, para logo em seguida mandá-la girar uma roleta; tudo isso
pela TV.
A filha dos dois estava sentada no chão, aos pés do casal, enquanto
os dois tentavam adivinhar entre eles as palavras que eram o mistério
do jogo da TV. Estavam tão entretidos, quem nem repararam que a
garotinha engatinhou e se escondeu atrás do sofá, tudo com um
sorriso matreiro no rosto.
À frente dela tinha um corredor escuro, pois as luzes do restante da
casa estavam apagadas. Mas ela não foi por lá. Foi para a sua
esquerda, para a cozinha, que estavam tão escura quanto o corredor,
talvez um pouco mais, já que a luz da sala que adentrava lá mal
fazia cócegas na escuridão presente, apenas desenhava um retângulo
luminoso no chão e transformava todas as outras coisas em sombras
amorfas, apenas contornos, o bastante para que ela não tropeçasse e
chamasse a atenção de seus pais.
Caminhou com cuidado pelo cômodo, desviando da mesa de mármore
quadrada que ocupava o centro do ambiente. Antes de se afastar demais
da mesa pegou uma cadeira, ergueu do chão com um pouco de
dificuldade e carregou consigo. Seguiu até o outro lado, até chegar
no armário. Pousou a cadeira no chão – mais cuidado que aquilo
seria impossível, já que as pernas de metal não fizeram um ruído
sequer ao tocarem o chão –, subiu no estofado e pegou uma lata que
estava em cima do armário. Enfiou a mão na lata e procurou algo
pontudo e dentado. Sua mão saiu de lá segurando uma chave.
Seu coração gelou no peito, batendo acelerado, quando ela saltou da
cadeira, que arrastou alguns centímetros no chão. Parou e ouviu, o
silêncio foi ensurdecedor. Aparentemente até a velha cabeça no
aquário que apresentava o programa a tinha ouvido, já que parou de
falar também.
– Letra “A” – disse a
voz na televisão.
– Painel, temos a letra “A”?
– perguntou a cabeça (aquela voz era inconfundível).
– Claro que tem! Sempre tem A!
– disse a mãe dela.
Foi só nessa hora que a respiração
da garotinha voltou ao normal. Levantou novamente a cadeira e a
retornou ao seu lugar, agora
com a chave no bolso.
Na ponta dos pés, ela passou pela
sala novamente, tomando sempre cuidado para sua sombra ficar atrás
do sofá. Agora foi se dirigindo ao corredor.
Mesmo com as luzes apagadas, a luz
da sala entrava diretamente no corredor, então não era um problema
caminhar nele. Ignorou uma porta à sua direita, o banheiro; uma à
sua esquerda, o quarto dela; sabia que a porta que a interessava era
a próxima.
Parou em frente a uma porta de
madeira lisa, apenas com uma maçaneta de metal e uma fechadura para
uma chave. Era bem no fim da casa, logo depois ela dava de cara com a
porta para o quintal.
Girou a chave, que estava dentro da
lata na cozinha, na fechadura. Bem devagar. Sabia que era improvável,
mas não queria arriscar que os pais ouvissem.
‘Click’… ‘Click’
Abriu
apenas uma frestinha na porta, com cuidado. Se espremeu pela abertura
e a fechou logo em seguida. O
escuro lá dentro era total, mas quando ela acendeu a luz, a bagunça
do lugar foi revelada. Caixas se empilhavam, pelúcias velhas e
poeirentas se amontoavam em um canto se misturando com trapos de
roupas velhas.
Ela então começou a tirar as
caixas do lugar. Tirava a primeira da pilha, colocava no chão,
analisava o conteúdo e repetia o
procedimento com a seguinte.
Não demorou muito. Na segunda pilha encontrou o que procurava. Tirou
lá de dentro um livro azul com um grande número 3 na capa. Estava
escrito, em uma fonte bem grande: Matemática Básica.
Com o livro no colo a garota sentou
no chão e começou a folhear o livro. Pôs na página 86, onde tinha
parado anteriormente. Estava ansiosa para saber mais sobre o que eram
aquelas tais frações.
De costas para a entrada
do quartinho como estava, nem
reparou quando a grande porta de madeira se abriu.
– O que você acha que está
fazendo? – perguntou a mãe dela.
Ela olhou para trás e sentiu seu
corpinho gelar quando viu seus pais ali, a encarando.
– Quantas vezes eu já não te
disse para não ler esses livros!? – disse o pai dela, falando bem
alto. Foi até ela e lhe tomou o livro das mãos.
– Mas pai… eu gosto muito de
matimática – ela
disse, e nessa hora os olhos do pai lacrimejaram.
– Só que isso… essa coisa…
não vai te levar a lugar nenhum! – rasgou
várias páginas do livro que tinha em mãos, e as mesmas lágrimas
que estavam presas nos olhos da garotinha, estavam presas nos olhos
do pai – Já para o quarto.
Amanhã você tem que ir para o seu curso. Já
pra cama.
A garota engoliu em seco, mas não
chorou, apenas foi em direção à saída do minúsculo cubículo.
– Ei! E me devolva a chave.
A garota colocou a mão no bolso do
short que usava por baixo do vestido rosa e tirou de lá a chave, que
entregou para seu pai.
Quando ela já estava no meio do
corredor, antes que chegasse ao seu quarto, o pai ainda pôde ouvir
ela chorando.
– Não acha que pegou muito pesado
com ela? – a mãe perguntou.
– Eu só não quero que ela se
iluda.
– Mas ela ama matemática.
– Esse é o motivo.
O programa já tinha terminado. Já
estava na cama há meia hora sem conseguir dormir. Sempre se
incomodava quando o marido não estava ao seu lado. Para piorar, a
imagem da filha chorando não saía da sua mente.
Levantou-se, passou no quarto da
filha que já dormia. Pôs
uma das mãos no travesseiro
e o sentiu úmido. Deu um
beijo de boa noite e lhe sussurrou no ouvido que eles só queria o
melhor para ela. Em seguida foi até o quartinho onde guardavam toda
aquela bagunça e encontrou o marido sentado no chão, igual à
filha alguns momentos antes.
– Não vai dormir?
– Daqui a pouco – ele respondeu
sem sequer olhar para trás
– Vamos, amanhã… – ela se
aproximou e percebeu o que ele estava fazendo. Colando as páginas do
livro que havia rasgado – O que está fazendo?
– Esperança. Esperança de que
nossa filha vá usar ele de verdade um dia.
A mulher se abaixou de beijou o topo
da cabeça do marido, saiu do quartinho e deixou o homem lá. Sozinho
e
com a lembrança de quando a educação era para todos.
Esse texto é uma homenagem e um agradecimento meu, como estudante
e brasileiro, a todos que foram às ruas nas manifestações a favor
da educação desse Quinze de Maio, pois um futuro sem perspectiva de
educação de qualidade é um futuro sombrio.
Outro agradecimento à garotinha que durante os protestos de 15 de Maio na cidade de Fortaleza, segurou o cartaz com os dizeres: "Bolsonaro, não quero ser paraquedista nem atirador", em frente ao campus da UFC. Foi essa a inspiração para esse texto.
Por fim: LUTEM
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