Momentos
Quando você tem um amigo metido a escritor, poeta ou filósofo,
acaba escutando algumas ideias que nunca passariam pela sua cabeça.
Esse meu amigo, de certa forma, é os três.
Digo isso
lembrando de um dia em que fui visitá-lo. Era um sábado pela manhã,
mandei uma mensagem para ele perguntando se minha visita seria
bem-vinda e ele me respondeu bastante animado. Realmente tinha um bom
tempo que não o via, pois a presença das nossas maiores amizades é
uma das coisas que a vida adulta nos priva.
Cheguei na casa
dele por volta das dez da manhã. Com sorte ele me convidaria para
almoçar e eu não teria que comer o arroz duro que eu cozinho.
– Já é quase
hora do almoço. Fica. Hoje Mônica vai fazer um almoço supimpa.
Era o que ele
sempre me dizia, e era o que eu esperava escutar hoje. Mônica,
esposa dele, como uma formada em gastronomia, era uma monstra da
cozinha. Conseguia fazer as papilas gustativas de qualquer um
derreter com o mais simples prato. Lembro de uma vez que quase tenho
uma viagem alucinógena somente comendo um crepe que ela havia
preparado. Talvez eu devesse perguntar por algum ingrediente
escondido.
Naquele dia,
porém, sua tão bem iluminada casa estava mais sombria. Não
fisicamente, mas a aura da casa parecia mais triste. Bati palmas e
fui atendido por Mônica, fato que estranhei. Meu amigo sempre tinha
gostado de atender seus amigos pessoalmente.
– Oi, Eduardo.
Entra – ela disse abrindo o portão, que se abriu com um rangido.
– Cadê o
Miguel? – eu perguntei preocupado. Afinal, aquilo não era do
feitio do meu amigo.
– Lá em cima –
ela disse, se referindo ao segundo andar do sobrado onde moravam –
Tô preocupada. Ele ficou assim de repente. Estava todo alegre,
falador, pediu até pra eu fazer uma lasanha pra você almoçar por
aqui – admito que nessa hora minha boca encheu d’água – quando
do nada PUF, ele se isolou lá em cima.
– Deixa eu ir
lá, ver se consigo falar com ele.
Subi a escadaria
íngreme, que vez ou outra era discussão na casa, já que Mônica
havia sugerido outro pedreiro pra fazer o serviço.
Cheguei ao
segundo andar e já ouvi um fungado. Baixinho, mas que só podia ser
de alguém chorando.
– Miguel –
chamei. Sem resposta – Miguel!
– Oi!
Segui aquele “oi”
até o quarto de visitas do segundo andar. Encontrei Miguel sentado
na beira da cama. A cabeça baixa e uma pequena poça de água aos
seus pés.
– Cara… tá
tudo bem? A Mônica tá preocupada – sentei ao lado dele na cama.
– Mais ou
menos, sabe?
– Como assim?
– Já parou
para pensar o que são as memórias?
Agora entra a
parte em que é relevante ele ser metido a escritor. Você vai ver
como o pensamento dele vai longe, e, juro por Deus, que foi assim que
aconteceu.
Claramente, pra
ele, aquela não foi uma pergunta retórica.
– Memórias são
como pessoas moribundas – ele disse, finalmente, depois de alguns
momentos de silêncio (que se estenderam mais que o necessário). Em
seguida me perguntei por que eu deveria saber disso.
Nem ao menos me
preocupei em perguntar sobre o que ele estava falando. Sabia que ele
continuaria de qualquer forma. E foi o que aconteceu.
– Na verdade,
são momentos moribundos. Momentos são coisas com uma expectativa de
vida tão baixa… e ainda assim são tão importantes. Irônico, né?
Me limitei a
concordar com ele, pois até aquele momento eu sequer sabia do que
ele estava falando. E não se discute com um homenzarrão de 1,90 m,
e 90Kg de músculo, que está chorando na sua frente. E foi o que eu
fiz, não discuti.
– Aí os
momentos passam. A expectativa de vida deles chega ao fim. Mas, como
a gente, eles não morrem de repente. Ele ficam moribundos. Entre a
vida e a morte.
– E momentos
moribundos são memórias?
– Que, se você
não cuidar muito bem delas, morrem. Somem da sua vida. E não
importa o quanto você lute, nunca mais vai vê-las novamente.
– Mas por que
você tá chorando? – perguntei, lembrando o motivo de estar ali.
– Porque eu
tive uma baixa – ele disse com um sorriso triste pendurado nos
lábios, que depois de alguns momentos se desprendeu e explodiu no
chão, como uma lágrima.
– Qual foi?
– Lembra da
Vitória?
– Lembro sim –
aquele nome me trouxe um certo arrepio.
– Pois é, eu
não – o sorriso triste apareceu de novo, mas teve o mesmo destino
do outro.
Aqui cabe pôr um
parêntese. Vitória foi a primeira namorada de Miguel. Os dois
namoraram por 8 anos, desde os doze até os vinte. Mas no aniversário
de vinte anos dela (isso eu posso falar com propriedade, pois eu
estava lá) aconteceu um terrível acidente. Todos que estávamos no
carro, exceto Vitória, sobrevivemos por milagre, mas não sem
sequelas. Tenho cicatrizes das quais nunca vou me livrar, mas quando
eu lembro do destino da pobre Vitória, essas cicatrizes parecem
nada.
– Como assim
não lembra dela?
– Não lembro.
Os momentos que eu passei com ela morreram. Quando dei por mim,
parecia que a décima praga tinha passado pela minha mente. Não
lembro como era o jeito dela, como era o cheiro do cabelo dela, a cor
dos olhos dela, como era o sorriso dela… Eu me acostumei com a
minha vidinha boa, com minha esposa. Deixei essas memórias de lado,
e elas… elas – pensei que ele ia começar a chorar de novo, mas
simplesmente deu uma fungada e engoliu o choro – Ela morreu por
minha culpa, e eu sequer lembro dela.
Aquilo, de certa
forma era uma meia verdade. Não existia um único culpado pela morte
de Vitória. Todos nós, bêbados, resolvemos sair naquele carro,
mesmo sabendo que ninguém ali tinha condições para dirigir. Todos
insistimos e deu no que deu. Acho que ele acaba se culpando mais, já
que era ele que estava no volante. Mas é aquilo, o mandante é tão
culpado quanto quem puxa o gatilho.
– Cara –
puxei o celular do bolso e coloquei em uma foto que tinha todo o
nosso grupo da faculdade junto. Nunca mais tinha visto aquela foto,
pois me doía muito, mas naquela hora agradeci por não tê-la
apagado. Dei um zoom no rosto de Vitória – Aqui – mostrei a ele.
Ele olhou e seus
olhos lacrimejaram. Ela era muito linda mesmo. O sorriso aberto, os
olhos de um castanho profundo e os cabelos negros como um
derramamento de petróleo.
– Você não
entendeu. Não é a mesma coisa. Agora eu só tenho a memória do
momento em que você me mostrou a foto dela. Não é uma memória
dela.
Aquilo pareceu
muito confuso para mim, por isso estranhei bastante quando eu
entendi.
– Entendo… –
eu disse, guardando o celular.
Ficamos ali, em
silêncio.
– Mônica tá
preocupada, sabia?
– É, ela se
preocupa muito. Me sinto como uma criança – eu sinceramente estava
começando a odiar aquele sorriso triste. Já cogitava arrancá-lo
dali na porrada.
– Isso é
porque ela te ama! Se você nunca mais vai ter essas memórias de
volta, então é hora de se contentar e começar a criar novas.
Podemos começar com a memória do dia que você dividiu uma lasanha
com seu amigo Eduardo.
– Não é tão
simples…
– Como você
sabe, se nem tentou?
– Mas…
– A gente
discute depois da lasanha. Anda.
E dividimos a
lasanha. Não foi o melhor dos almoços, admito. Ele ainda estava
triste, e agora eu também estava. Foi um almoço silencioso, e
Mônica mostrou mais uma vez porquê eu respeitava ela. Ela nunca
discutiu com Miguel pelo fato dele ainda chorar pela sua ex morta. Ao
contrário, nunca vi ninguém apoiar tanto outra pessoa na vida.
Quando terminamos
o almoço, me ofereci para ajudar Mônica a lavar a louça, para que
eu pudesse falar com ela. Expliquei o fato (cortando toda a
filosofia, afinal não tinha todo o tempo do mundo) e ela, como
sempre, mostrou-se super compreensiva. Quando terminamos, eu me
despedi e pude ir embora tranquilo, sabendo que, agora, Miguel
estaria em boas mãos.
Nunca mais fui
até a casa de Miguel desde então. Não sei se ele chora à noite,
não sei se ele conseguiu recuperar alguma memória dela (embora ele
ache que é impossível), mas sei que Mônica estará lá para ele.
É isso. Miguel,
com seu pensamento de escritor/filósofo/poeta, me fez ver algo que
eu nunca havia enxergado. Me fez ver por outro ângulo as memórias
que eu tanto evitava. Agora eu tinha medo. Medo de chegar em casa e
ver quantos cadáveres estariam me esperando.
Photo by Jon Tyson on Unsplash
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