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O homem frio

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Por circunstâncias que não vem ao caso, me vi congelado. Senti o frio tomar meu corpo das pontas dos meus dedos até o topo de minha cabeça. Meus pulmões, antes volumosos e potentes, se amofinaram sem o tão amado ar o visitando constantemente. Minhas cordas vocais enferrujadas não conseguiriam emitir mais som que um velho violino de cordas estouradas. Apenas meus olhos se moviam, mas tão imperceptivelmente que apenas alguém bem atento a mim poderia notar, o que nunca ocorreu… até ele surgir. Estou sentado nesse banco e nessa pose provavelmente por mais tempo do que você tem de vida. Pernas cruzadas, braço esticado sobre o espaldar do banco e a roupa meio amarrotada pelo jeito torto que estou sentado. Pessoas passam por mim o tempo todo e, pelo tempo que as vejo, consigo as reconhecer. O homem apressado com uma pasta. A moça loira de salto muito alto. O pálido, que cada vez está mais cadavérico. As considero até amigas. São meu passatempo e minha diversão pela eternidade ficar conjectur...

Dois dedos de cachaça sobre autoconhecimento

Dizem que o álcool é um soro da verdade, que aquilo é falado quando se está bêbado é o que você realmente pensa. Claro que essa afirmação é um exagero. O que acontece é que quando você sai um pouco de si, acaba perdendo alguns freios que foram colocados em sua vida  — alguns que você nem sabe quando foram colocados lá, ou mesmo tem noção da existência deles. Barreiras que muitas vezes não são reais, apenas linhas de giz desenhadas no chão, fronteiras impostas pela sociedade ou por si mesmo, que conscientemente você as evita, foge delas e se vê acuado no meio de um círculo branco. Quando saímos um pouco do mundo consciente, não é difícil esquecer da existência desses meridianos e passar por cima de um ou de outro. A consequência disso é nos conhecermos de verdade — além de algumas vergonhas e confusão —, descobrimos sobre desejos reprimidos por medo de julgamento, sobre pensamentos que evitamos falar para não desagradar alguém. Eu tinha medo de beber. Tinha medo de descobrir o que...

Espírito Natalino empresarial

Durante qualquer momento do ano irão me ouvir falando mal de privatizações. Especialmente essas privatizações selvagens que estão sendo realizadas a torto e à direto pelo Brasil.Dito isso, é com muito desprazer que venho aqui saudar a grande companhia Enel pelo espírito festivo com o qual têm saudado todos os seus compulsórios clientes com comemorações natalinas desde o começo do segundo semestre do ano passado, a saber 2024. Todos sabem que a tradição de se comprar os famosos “pisca-piscas” está se vendo ultrapassada e cada vez se veem menos casas sendo ornadas pelas luzinhas coloridas. Nossa grandessíssima empresa energética ao saber disso resolveu a questão tornando cada uma das luzes das casas dos seus cliente da região de Caucaia um pisca-pisca próprio. Consigo claramente imaginar um altivo funcionário, após receber a ordem, baixando e subindo a alavanca para que os ilustres caucaienses pudessem desfrutar do piscar de luzes natalino. Ah… como são boas as tradições. Para além di...

O Cavalo de Troia do tempo

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O futuro é glorioso, o passado é uma vergonha e o presente uma prisão. Quem me dera poder deixar todo esse presente tenebroso para trás e passar a viver nos meus planos perfeitos, quando tudo já deu certo e toda a ansiedade já não faz mais sentido. Cruelmente o tempo olha para mim, e conforme corro tentando fugir de suas grades, ele as move de um lado para o outro, de forma a me deixar sempre aprisionado nesse lamaçal que eu chamo de “agora”. Preso na insônia das noites. Na azia pós café. Na ansiedade do momento. Na espera do sim. Na expectativa da risada. Torturas excruciantes a qual meu algoz me expõe e ri enquanto eu danço em busca de uma saída. O amanhã me reserva trabalho, talvez uma ou outra risada magra. O final de semana me reserva talvez um amigo, um abraço, um aconchego; um livro quentinho, um almoço saboroso, conversas e risadas. O ano que vem me aguarda com oportunidades, uma nova vida, uma preparação para a nova década. O primeiro pé no futuro. Ainda assim, cá estou e...

Esconderijo

Após a brincadeira todos se reuniram para conversar. — Onde se esconderam? — Debaixo da cama. — Embaixo da escrivaninha. — Dentro da impressora — diz despretensiosamente o mais novo que tem o olhar perdido. Todos os olhares se voltam ao baixinho. — Eu… vi coisas horríveis…

No canteiro tinha um menino

E meu ônibus deu o prego no meio de uma avenida, e o pior, a alguns quarteirões da minha casa. Não me orgulho de dizer o quanto xinguei o motorista e mandei, junto com uma pequeno multidão enfurecida, ele tirar o ônibus dali, mesmo que tivesse que descer e empurrar o ônibus. Muito plácido ele acendeu um cigarro preso pelos lábios ocultos por um bigode volumoso e afastou todos os impropérios com um gesto da mão, como se não afastasse nada mais que a fumaça do próprio cigarro. Ao perceber que aquela gritaria de uma pequena multidão enfurecida simplesmente não levaria a nada e que aquele ônibus não se moveria mais um metro que fosse, a multidão começou a baixar o volume de suas vozes e conversar entre si, em vez de dirigir suas palavras ao chofer. Aquele papo de "que absurdo" e "o transporte público de fortaleza é uma merda" sob o sol escaldante das duas da tarde não me chamou muita atenção e não vi motivos pra ficar ali. Especialmente com a inexistência de sombras p...

Almoço de final de semana

Posso claramente imaginar, em alguma ou várias granjas mundo afora, centenas de galos e galinhas aos prantos, pulando e agitando as asas. As mais sensíveis emitindo suas preces que corriam o ar, um sensível e tocante "có, có, có" lamurioso. Outras, mais práticas e rebeldes, gritando protestos de "cócócó, cócócó", indignadas com a situação. E não é para menos, eu garanto, pois resolvi sair de minha casa para um passeio ao sábado e, conforme o ônibus no qual eu estava acomodado singrava as ruas do meu bairro, um único cheiro era onipresente. Por todos os lados, em todas as ruas, dezenas de churrasqueiras com sua respiração bulbosa e cinza, exalavam o odor de galinhas sendo assadas e oferecidas aos passantes sob o nome de galeto. Um verdadeiro massacre. Não me surpreenderia se, ao avistar uma das suas querias irmãs arreganhada e tostando sobre um punhado de carvão em brasa, uma daquelas carpideiras das granjas se unisse às rebeldes revolucionárias para declarar uma gue...