O homem frio

Por circunstâncias que não vem ao caso, me vi congelado. Senti o frio tomar meu corpo das pontas dos meus dedos até o topo de minha cabeça. Meus pulmões, antes volumosos e potentes, se amofinaram sem o tão amado ar o visitando constantemente. Minhas cordas vocais enferrujadas não conseguiriam emitir mais som que um velho violino de cordas estouradas. Apenas meus olhos se moviam, mas tão imperceptivelmente que apenas alguém bem atento a mim poderia notar, o que nunca ocorreu… até ele surgir.

Estou sentado nesse banco e nessa pose provavelmente por mais tempo do que você tem de vida. Pernas cruzadas, braço esticado sobre o espaldar do banco e a roupa meio amarrotada pelo jeito torto que estou sentado. Pessoas passam por mim o tempo todo e, pelo tempo que as vejo, consigo as reconhecer. O homem apressado com uma pasta. A moça loira de salto muito alto. O pálido, que cada vez está mais cadavérico. As considero até amigas. São meu passatempo e minha diversão pela eternidade ficar conjecturando a respeito de suas vidas, desejos e anseios. Busco entre os passantes um refúgio da solitária imensidão de meu banco. Todos passam, mas o banco é o único mundo que eu conheço e eles não são mais que sombras no fundo da minha caverna.

Entre os que passam, um é especial. Não sei seu nome, mas o chamo de Platão. Ele senta-se no meu banco comigo e troca ideias sobre sua vida. Já o vi rir, já o vi chorar e de certa forma o considero lindo dos dois jeitos; sejam seus lábios abertos em um sorriso, ou repuxados em um choro. Aqueles brilhantes lábios rosa, de uma inocência e pureza que eu jamais vi em outro passante.

Platão era diferente em tudo das outras pessoas. Ele era o primeiro a chegar, quando o crepúsculo se tornava mais bonito, e saía como se fugisse dos primeiros raios de sol.

Um dia, ele chegou até mim em roupas muito simples e escuras, fora do seu habitual. Seu olhar me evitava, assim como suas palavras, que saíam de sua boca quase que sopradas. Conforme ele falava, consegui ouvir fragmentos, palavras soltas, pois ele ia aumentando o volume do que dizia. Até que alcançou uma intensidade desejável e eu consegui entender.

Sua frieza. Ela me machuca. Venho aqui, choro, me abro, rasgo meu peito e dou meus sentimentos pra você ainda encharcados de mim e você não me conforta. Apenas me olha como se eu não importasse, e sei que não importo pra você. Mas não suporto mais isso.

Então ele levantou, foi atrás do banco e voltou com uma grande marreta, a qual ele sacudiu em direção à minha cabeça e a acertou em cheio. Não senti absolutamente nada, mas vi meu mundo mudar de perspectiva pela primeira vez. Ainda caí no chão olhando pra ele e pro restante do meu corpo sentado, ao qual ele destruiu pedaço a pedaço, bem como o próprio banco.

Ainda assim não senti nada.

Acho que ele tem razão. Eu não passo de um homem frio.

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