A Máquina Sentimental

Henrique abriu o guarda-roupa atochado de vestimentas que ele não usava há mais de um ano. Na verdade, na ocasião da compra, levou por estar na moda. Todos nas ruas usavam aquilo, e todos pareciam felizes em usar aquilo. Infelizmente essa felicidade não durou um mês, já que na terceira semana, um crítico de moda europeu atacou a onda, e todos tiraram as camisetas verdes na rua mesmo e as atiraram no chão.

Num canto do quarto, uma estante exibia uma coleção de quadrinhos que ele nunca leu, mas estavam na moda dois anos atrás.

Prateleiras enfeitavam o quarto, com action figures de personagens que ele não se importava, mas todo mundo tinha. Pelo menos no semestre passado.

Vestiu uma roupa qualquer que achou jogada por lá e saiu para a rua. Havia acordado aquele dia com um vazio preenchendo o seu peito. O que significava que uma nova moda havia sido lançada e ele tinha que ter ela. Enquanto caminhava nas calçadas, ele apalpou o bolso que continha o cartão sem limites, como se sentisse que hoje iria usá-lo.

Mas tudo estava normal. Ninguém de roupa estranha, nem com um aparelho na mão, nem com um patinete foguete...

"Droga"

Dobrou em uma esquina e viu uma mulher bebendo refrigerante em uma latinha verde. Ela estava usando roupas de academia e usava seus fones. Quando tirou a latinha dos lábios, tinha um belo sorriso nos lábios. Olhou para ele e o cumprimentou. Ele retribuiu atônito e seguiu caminhando.
No fim da rua, tinha uma praça. Crianças brincavam entre as árvores, correndo com suas latinhas róseas na mão. Correndo como se não houvesse amanhã e rindo o tempo todo. Seus pais e outros adultos que estavam ali, bebiam garrafas e latinhas de cores variadas. Branco, vermelho, cinza, marrom. Mas todos bebiam.

Isso deve ser a nova moda, pensou.

Caminhou por entre a praça e parou em frente à um banco que tinha três pessoas sentadas, claro que todas segurando alguma coisa de beber.

"Vocês! Digam onde conseguiram isso aí!"

Os três pararam a conversa e apontaram para o centro da praça, perto de um canteiro de azaléias, mas que no meio se infiltravam cravos-de-defunto e algumas ervas daninhas, estava uma grande máquina de coloração vermelha com uma faixa branca entre duas azuis cortando ela verticalmente e em frente a ela uma fila enorme. Ele se aproximou e viu que todos colocava uma nota de dois reais em uma entrada, selecionava a bebida que você queria e a máquina soltava, por uma abertura mais embaixo, a sua escolha. Viu também que tinha escrito algumas coisa nas embalagens, mas de onde estava não dava para ler. Foi então para o fim da fila, que não parava de crescer.

Enquanto estava na fila, notou padrões. Quem tinha a lata verde sorria muito. Já quem tinha as latas rosas, parecia ficar muito agitado. Pessoas com latas vermelhas geralmente estavam em pares ou com animais de estimação, ou abraçados com os filhos, que só queriam brincar sem largar as latas rosas.
Mas mesmo esses passatempos perdem a graça. E esse perdeu muito rápido, pois ele ainda estava na metade da fila. Demorou mais meia hora e a ele finalmente chegou à bendita máquina. Faltava apenas mais uma pessoa na sua frente. Henrique tomou um susto quando o homem deu um chute na máquina.

"Máquina idiota! Ou o refrigerante ou o dinheiro!" gritava enquanto agredia o objeto.

"Se o senhor puder deixar ela inteira para o resto do pessoal, todo mundo agradece", disse Henrique, e o homem saiu dali reclamando e xingando a todos que ainda estavam na fila.

Ficou cara a cara com o monstro metálico que era a sensação da pracinha. Colocou o cartão no lugar reservado para esse tipo de transação e discou a senha. Finalmente pôde ver que cada bebida tinha um nome que era exposto no painel da máquina. Ele apertou o botão verde com o nome felicidade e ouviu as engrenagens e roldanas da máquina se moverem, quando caiu na abertura uma garrafinha vermelha de, no máximo, 200 mL.

Ele pegou a garrafinha e saiu. Estava escrito na embalagem em letras diminutas, as quais ele teve que espremer os olhos para ler, "Amor".

"Eu não escolhi isso. Bem... se é assim...".

Ia abrir a garrafa quando ouviu uma voz familiar.

"Ei!", veio o grito. "Essa garrafa é minha". Era o homem que estava brigando com a máquina minutos antes.

Agora ele tinha entendido. O pedido dele devia ter ficado preso, e quando Henrique fez o seu, acabou empurrando o dele para fora.

"Nada disso. Paguei por ela", disse e já ia abrir, quando homem jogou seu corpanzil para cima dele.
Os dois começaram a brigar no chão, com o homem tentando tomar a bebida de Henrique, mas não alcançando; e Henrique abrir a garrafa e beber, mas sem poder dar brecha pro homem tirar a bebida dele. Ao redor as pessoas gargalhavam da cena, apontando e rindo.

Os dois brigões nem perceberam que as pessoas da fila começavam a sair de lá chateadas, xingando ou aos berros, e que os primeiros da fila foram até lá para separar o atrito.

"Vamos lá gente, porque diabos vocês tão brigando?", disse o homem que foi até eles, de camisa gola polo e bermuda jeans.

"Esse cara pegou a última bebida do amor", disse o homem que se considerara roubado.

"O que!? Foi ele!?", disse o da gola polo. "Você sabe de onde eu vim pra conseguir isso?"

Henrique engoliu em seco, quando um grande circulo se formou ao redor dele. Todo formado de pessoas da fila. Cada um com suas razões.

Então estourou uma briga. Todos tentavam tirar a bebida de Henrique, e alguns conseguiam, mas logo eram surrupiados por outras mãos, e essas por outras, até chegarem novamente nas mãos de Henrique. Socos foram desferidos sem dar tempo para ninguém comemorar, pois ao dar um soco, recebia-se um em troca, logo em seguida, não necessariamente da mesma pessoa.

A briga foi se desenrolando com as pessoas cansando ou sendo nocauteadas. As pessoas ao redor, principalmente as que bebiam de embalagens verdes, apenas riam e pensavam em como aquilo estava divertido.

O ultimo chute foi desferido por Henrique, que acertou o flanco do homem gordo que reivindicou primeiro a garrafa. Ele olhou para o chão, vendo que estava rodeado de pessoas caídas. Antes que a culpa batesse em sua consciência, ele bebeu a garrafa em um gole.

E ele amou...

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Pobre Aldeota

O Cavalo de Troia do tempo

Culpa