Ruínas

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Ruínas

A pequena lanchonete de esquina, com o dizer Sandubom brilhando em vermelho e amarelo em sua fachada, acabava de abrir. Seus funcionários, ainda morosos, arrumavam as mesas e varriam o chão para a chegada dos clientes quando Benício passou em seu gol preto virando a esquina, repentinamente deixando para trás o asfalto da avenida e dando de cara com um calçamento irregular. A vibração do motor e da pavimentação malfeita se mesclavam sob as luzes pálidas dos postes que acendiam aos poucos, como se estivessem apenas aquecendo para o verdadeiro trabalho da noite. Em uma das calçadas que ladeavam a rua, um grupo de senhoras sentadas em cadeiras brancas de plástico lhe acenaram com entusiamo, mesmo que naquela noite ele não estivesse ali para ouvir as novidades do quarteirão.

A casa de Lara ficava mais abaixo, guardada por um alto portão de ferro preto. Logo que tocou a campainha ouviu a voz de sua namorada lhe dizendo que entrasse, tão casualmente que se ele estivesse distraído sequer escutaria. A sala daquela casa sempre lhe trazia um ar de familiaridade. O sofá vermelho no meio da sala, o rack de madeira que suportava a TV, os livros perfeitamente ordenados por cor e tamanho na estante, até mesmo Frida, a idosa gatinha que veio toda manhosa mendigar um carinho entre os seus tornozelos, todos lhe eram velhos conhecidos. Abaixou-se, afagando atrás das orelhas da gata e sendo retribuído com um suave ronronar.

Eu sei que a gente vai se atrasar um pouco, mas é que eu tive problemas pra sair mais cedo do trabalho — Lara continuava falando em um tom que parecia que estava conversando apenas consigo mesma — O chefe queria que eu ficasse fazendo hora extra. Logo hoje!

A não ser pela possibilidade do Benjamim desmaiar de fome, acho que a gente não precisa se preocupar.

Pode mandar uma mensagem pra eles começarem a pedir sem a gente.

Benício se levantou tirando o celular do bolso. No grupo de Whatsapp dos amigos, como já imaginava, Benjamim já perguntava se Benício chegaria na hora dessa vez. Benício apenas deu uma risadinha e achou que seria mais divertido confirmar e dizer para que esperassem a chegada dele e de Lara para começarem a fazer os pedidos, pois chegariam na hora. Benjamim começou a digitar uma resposta. Enquanto aguardava, no canto de seu olho, ao longe, Benício viu que Lara havia saído do quarto. Quando a visão dela naquele vestido preto que terminava no meio de suas coxas o atingiu, pareceu vir junto com uma lufada de ar que arrastasse para longe o seu fôlego. Meio distraída, ela ainda ajeitava uma argola em sua orelha. Benício tinha a sensação de que devia dizer algo, reagir àquela presença avassaladora, mas sempre que ensaiava uma frase ou elogio em seus lábios desistia em seguida, por medo de parecer ridículo, ou mesmo piegas. Por outro lado, quando o olhar de Lara finalmente o encontrou, ela pareceu esquecer de seus esforços para colocar o brinco, paralisando por um segundo. A figura baixa e esguia, meio pálida, aproximou-se de Benício terminando finalmente de arrumar a bijuteria na orelha; com uma mão alinhou o seu cabelo e finalmente pareceu dar alguma atenção à pessoa de Benício.

Sério? Essa camiseta? — cruzou os braços frente ao namorado e indicou a camiseta preta que ele vestia, onde era possível ver uma grande estampa do Yoda dando um passeio nas costas do Luke.

Não lembra dela? — deu a réplica em um tom divertido.

Lembro sim. E você? Lembra para onde estamos indo?

Ué, eu achei que você ia gostar. Afinal é a camiseta que…

Você estava vestindo quando a gente se conheceu. É, eu lembro. — Lara o interrompeu, o deixando com um sorriso amarelo no rosto.

Lara entregou a chave de casa na mão de Benício, saiu da sala apagando a luz e deixando-o lá, de pé no escuro e sem reação. Frida saltou sobre o sofá e agora encarava Benício com os olhos amarelos que brilhavam debochados no escuro. Quando voltou a si, Benício suspirou com os dentes cerrados e saiu da casa trancando a porta e passando um cadeado no portão. Lara ainda caminhava em direção ao carro, puxando para baixo a barra do vestido enquanto andava e verificando se ele estava bem ajustado às suas costas.

A outra camiseta que você mandou eu vestir tava suja — emendou ele, após um tempo, enquanto ajustava o corpo largo ao assento, o banco rangeu um pouco reclamando, mas aquilo já era de praxe.

É. Eu sei.

As queixas do carro pareceram não se limitar aos rangidos do banco, pois apenas conseguiram partir na terceira vez que a chave girou na ignição. Na segunda vez que girou a chave, Benício ensaiou uma piada sobre aquele carro horrível. Na ponta da língua tinha várias histórias em que aquela lata velha deixou os dois na mão. Virou-se na direção de Lara e o sorriso que preparara morreu antes de nascer ao ver que a namorada apenas olhava pela janela, para o outro lado da rua, onde não havia nada mais que portões pálidos e paredes rabiscadas. Apenas girou a chave mais uma vez e o carro pareceu entender o recado.

Cerca de meia hora depois de partirem, visão da faixa de areia que circundava a massa negra e espumante do mar noturno trouxe um novo frescor à viagem. Principalmente quando Lara desligou o ar-condicionado e abriu a sua janela do carro. Estavam chegando ao destino e o vento gelado trazia o cheiro de mar e sal para dentro do veículo, revitalizando os ânimos. Lara sentia como se aquele fosse o banho frio que tomava toda manhã.

Não muito longe deles, os hotéis à beira-mar, lotados, tinham casais pendurados na varanda apreciando a visão do luar que se estendia sobre as águas. A leste, uma lua amarela e inchada começava a dar suas caras, solitária na imensa abóbada fosca e vazia que se estendia sobre eles.

Seguiram mais adiante junto com a fila de carros que ia na sua frente até avistarem um restaurante com a fachada em vidro cristalino, a sua movimentação de doze de junho à mostra. Benício guiava o carro apreensivo, não pelo trânsito mas por Lara que não lhe dirigira a palavra mais que três vezes desde que falaram sobre a bendita camiseta; sendo que nenhuma delas foram mais que observações apáticas a respeito do trânsito ou sobre a forma como Benício dirigia. Aquela discussão, em um primeiro momento o deixou furioso. Sentiu que o passado dos dois não significava tanto para ela quanto para ele, mas algo dentro de si sufocava essa ideia, e a raiva foi esvanecendo. Dentro dele o medo de tê-la magoado era um espectro que começava a enevoar seus pensamentos. Discretamente, ele dirigia olhares fugidios à Lara, que logo voltavam para a rua, apenas para novamente recair sobre ela. Não sabia o que procurava. Um sinal, um movimento, qualquer coisa que lhe desse alguma pista sobre o que se passava dentro daquela mulher.

Uma vaga! — ela disse de supetão lhe apertando o braço

Despertou de repente, a neblina em seu pensamento se dividiu como o mar vermelho, e fez a baliza para encaixar o carro no lugar certo. Era uma boa vaga, considerando a quantidade de veículos que se alinhavam ao meio-fio.

Já frente ao restaurante tinham uma visão ampla do salão principal, de onde emanava uma cálida e suave coloração amarelada devido às inúmeras luzinhas que cruzavam o ambiente de um lado a outro como bolhas de sabão cintilantes sobrevoando a cabeça dos comensais; um sedutor refúgio das frias lâmpadas de LED que iluminavam a rua. No canto mais à esquerda do ambiente quatro pessoas se sentavam ao redor de uma larga e redonda mesa de madeira. Viram quando Benício e Lara aproximavam-se e acenaram alegremente para os dois. Enquanto Benício acenava aos amigos, não reparou que Lara tomou a sua dianteira e que já ia em direção à entrada também acenando a todos com um sorriso pendurado na face. Os dois já estavam frente a porta quando Lara sentiu alguém lhe segurando o braço. Olhou para trás apenas para encontrar um sério olhar de solicitude sobre si.

Tudo bem? — Benício perguntou.

Poderia estar pior.

Me desculpa. Eu não sabia que…

A gente pode discutir isso depois?

Ele apenas concordou com um aceno sério, abriu a porta para Lara entrar e os dois seguiram cheios de sorrisos. Um atendente vestido a caráter, com terno e gravata, os recebeu na porta e os indicou a mesa, os acompanhando até lá.

Olha quem chegou — Andressa levantou, abraçou e beijou Lara no rosto. Estava tão deslumbrante quanto ela, e todos ali sabiam que ela apenas queria mostrar aos recém-chegados o elegante vestido vermelho sem alças que usava, sentou novamente tirando da frente do rosto um maço dos volumosos cachos que tomavam sua cabeça na forma de um deslumbrante cabelo crespo. Enquanto isso, Benício passou cumprimentando todos na mesa. Abraçou Andressa e a todos os outros amigos também, à exceção de Beatriz, a quem ele estendeu a mão em um cordial cumprimento que podia até parecer distante para alguém que olhasse de fora e ignorasse a calorosa troca de olhares e sorrisos doces.

Os dois sentaram nos últimos lugares vagos.

Finalmente. Se eu desmaiasse de fome vocês iam se entender com meu advogado — Benjamin disse e soltou uma risada grave, que era tão característica sua. Riu ainda mais, mas em um tom bem mais baixo, com o estalido de um tapinha na nuca que recebeu de sua esposa, a Andressa.

Então vamos chamar o garçom, seu morto de fome — Benício disse, risonho.

O garçom aproximou-se e um a um os pedidos foram ditados e anotados, por fim, restou apenas Lara encarando o cardápio e o garçom a encarando.

Já escolheu? — Benício perguntou, em baixo tom, se aproximando dela o suficiente para olhar o cardápio também.

Ainda não. Acho que eu… vou querer esse frango — ela disse indicando um dos últimos pratos do cardápio e um dos mais baratos também.

Tem certeza?

Sim.

Certeza?

Olha, sabe que você…

Benício pousou uma mão sobre o seu antebraço. O silêncio na mesa começava a ficar meio esquisito e impaciência começava a surgir no rosto do garçom.

Certeza? — Benício perguntou mais uma vez.

Na verdade… — Lara apontou um prato da sessão francesa do cardápio. Coq-au-vin. O preço era discretamente impresso logo abaixo da descrição do prato, ainda assim saltava aos olhos da cara.

Garço…!

Tá doido? — Lara o puxou e murmurou bem próximo ao ouvido dele — Viu o preço?

Benício se desvencilhou dela e chamou o garçom com um movimento da mão, sem fazer a mínima ideia de como se pronunciava coq-au-vin, apontou para o garçom o prato no menu. Finalmente o garçom anotou com aborrecimento e saiu.

É só hoje — ele disse para ela, sorrindo.

O silêncio na mesa resistiu por um momento

Então, Lara — disse Beatriz — Nem você conseguiu fazer o Beni aí usar camisa social?

Infelizmente ainda não posso assistir ele se vestindo com o chicote na mão.

Com a mesa inteira ao seu redor rindo, Benício forçou-se a sorrir. Todos os homens ali usavam uma roupa semelhante àquela que Lara pediu que Benício usasse. Camisa social e um sapato sóbrio preto. Nada exagerado, mas o mínimo para não passar vergonha. Naquele ambiente, vestido como estava, ele começava a se sentir meio ridículo.

Ideia estúpida”, pensou em contraponto a horas atrás, quando encontrou aquela camiseta jogada em um canto do guarda-roupa e pensou que usar ela para um encontro seria uma ótima ideia.

Mas eu amei o seu vestido — Beatriz completou.

Obrigada! — Lara devolveu o sorriso — Ainda tô me acostumado com a ideia de colocar um vestido.

Se serve de consolo, ao menos ficou você tá muito linda nele — Andressa adicionou.

Lara corou um pouco, e, como sempre, era fácil de perceber quando o sangue lhe subia à face, seja por qualquer motivo que fosse.

E o emprego? —perguntou André para Benício, enquanto passava um braço sobre os ombros de Beatriz. Benício virou o rosto na direção da rua por meio segundo, mas logo voltou a olhar o casal. Era apenas um velho reflexo que ele ainda mantinha inconscientemente.

Ainda sem nenhum. É bom eu arranjar algum logo, se não da próxima vez vocês vão me visitar debaixo de alguma ponte.

Ei! Sem conversas sérias hoje! — Beatriz disse, inclinando o corpo sobre a mesa e olhando para todos ali — Vamos nos divertir. Amanhã a gente conversa sobre a queda da bolsa.

Essa daqui perdeu um celular assim. Tava na bolsa, a bolsa caiu e PLAFT, lá se vai o celular — Benjamin riu sozinho e parou ao ver que ninguém o tinha acompanhado — Pelo menos eu tô tentando — se esticou na cadeira com os dedos entrelaçados atrás da cabeça.

Às vezes eu me pergunto por que eu tô contigo, sabia? — Andressa comentou, mas via-se que ela segurava um sorriso bobo.

Acho que meu charme irresistível já fala por si — Benjamin disse arriscando um beijo que foi bloqueado por uma mão em seu rosto.

Pra não deixar esse idiota falar mais alguma coisa — Andressa emendou enquanto afastava Benjamin — E então… e esse noivado? Sai?

Lara e Benício se entreolharam por um momento. Poucos dias atrás haviam tido uma conversa a esse respeito. Era um assunto que surgiu sempre como uma piada entre os dois, mas que de alguns tempos para cá começou a ser evitado. Os argumentos contra e a favor eram sempre esmiuçados sobre a mesa, os mesmos argumentos, todas as vezes, com a mesma conclusão. Apenas não chegavam a um lugar-comum e decidiam ir postergando, afinal aquilo não era exatamente uma urgência.

Quando a Lara quiser.

Quando o Beni quiser.

Os dois falaram como se tivessem ensaiado, o que não estava tão longe da verdade.

Ai vocês… eu só quero um bolinho de casamento, umas valsas, uns vexames, umas fofocas sobre quem transou no banheiro… Vocês vão me negar isso?

Como poderíamos? Você tem desejos tão simples — Lara respondeu.

Praticamente a monja Cohen do Manuel Sátiro — Beatriz disse arrancando risadas da mesa.

Olha a Bia, por exemplo. Só a festa de noivado dela com o André foi o auge. Calcule o casamento. Não perco isso por nada!

Bondade sua. Eu sei dar boas festas viu.

Por isso eu simplesmente deixei ela decidir tudo. Estava tão surpreso quanto vocês com tudo aquilo — emendou André.

Beatriz então esticou o braço através da extensão da mesa e pôs uma mão no ombro de Benício. Já estava rindo previamente, antes mesmo de dizer qualquer palavra.

Beni, lembra daquela vez que a gente foi convidado pra um casamento de uma menina da faculdade?

Nossa… Eu já nem lembrava — disse ele, começando uma risada que veio aos poucos, conforme aquela lembrança empoeirada era retirada do mais fundo da sua cabeça e era posta de novo nos holofotes — Como que eu esqueci disso? Acho que nenhum casamento vai superar aquele. Lembra de como o Renato saiu de lá?

O que foi que aconteceu? — Andressa trouxe à tona a dúvida de todos ali, que apenas observavam os dois gargalhando em dupla, alheios ao restante da mesa.

Beatriz pediu um momento com a mão, para que pudesse se recompor e dar alguma resposta. Segurou um pouco a risada enquanto Benício continuava.

Olha, não tem nem tanta graça se você não tava lá. Só ouvindo da gente não vai ter graça.

Foi tudo o que conseguiu dizer e depois tapou os olhos com a mão para começar a rir tudo de novo. Eventualmente os dois pararam de rir, Benício limpou uma lágrima que escorria, e Beatriz se apoiou no ombro de André para tomar algum fôlego.

De novo vocês dois com histórias que só vocês sabem e acham graça. Pra quê sair em grupo então? — disse Andressa.

O garçom logo surgiu novamente equilibrando os pratos que cada um pediu, se desviando de outros garçons que transitavam no salão naquela noite. A conversa continuou durante o jantar seguindo o desejo e exigência de Beatriz. Passaram aquelas horas conversando bobagens sem importância, pois o importante ali não era o conteúdo do que dissessem, mas sim a presença de cada um ao redor daquela mesa. Ao fundo da cena, uma música suave tocava, os acordes do piano já haviam se tornado simplesmente som ambiente, ruído de fundo. Dentre aquelas mesas, a daquele grupo parecia destacar-se. Ao redor, pessoas apáticas e brilhantes de joias sentavam com finesse, aparentando a rigidez pétrea de um diamante, mesmo em suas risadas e comedidas exaltações. Naquela mesa de canto, que ficava no caminho do banheiro, Benjamim já havia se levantado da cadeira três vezes para encenar algum episódio de alguma história que ele estava contando no momento; André se reclinava sobre a mesa e Benício, mesmo tenso, gargalhava com o corpo inteiro sentado na cadeira.

Quando um garçom com cara de poucos amigos e um bigode fino veio retirar os pratos vazios da mesa, algumas pessoas, que não dirigiriam na volta para casa, pediram drinques para “ajudar na digestão”, como disse Benjamim. Foi quando, em um movimento despropositado com a mão, feito simplesmente para ilustrar uma conversa sobre uma discussão que houve no escritório, André derrubou a taça cheia do drinque de maracujá sobre o colo de Beatriz. Uma comoção tomou conta da mesa enquanto Bia dizia a todos que estava tudo bem e voltava a taça sobre a mesa.

Lara se levantou já segurando ela pelo braço.

Ande, ande. Você não me roubou essa calça jeans pra deixar ela morrer assim. Vamos lavar isso, agora!

Roubei?

Disse confusa enquanto era arrastada em direção ao banheiro, o qual ficava do outro lado do salão. Após um instante, a conversa foi voltando aos eixos. Piadas sobre o desastre de André se enlevavam seguidas de risadas que o constrangiam e divertiam na mesma proporção. Quando as mulheres demoraram a voltar do banheiro, André interrompeu uma piada de Benjamin.

Ei, Benício, pode ir dar uma olhada se as meninas já tão perto de voltar.

Verdade né, já tem tempo que elas foram.

Espero que a Lara não tenha me trocado pela Bia — disse, já levantando.

Eu não culparia ela — André disse com uma risada.

Nem eu… — murmurou Benício quando estava a uma certa distância.

Atravessou o salão e a cada olhar estranho que recebia sentia vontade de se ajoelhar e pedir para Lara tirar uma camisa não se sabe de onde, apenas para ele não se sentir tão deslocado ali.

Os banheiros ficavam em um corredor. Ele se aproximou da porta e quando ia bater, ouviu a voz da amiga e da namorada.

— … às vezes ele é tão desleixado.

É coisa dele. Olha, desde que eu conheço o sujeito que ele não sabe muito se comportar em lugares assim.

Parece que minha opinião não importa, sabe?

Você sabe que não é bem assim.

Quando se viu prestes a entrar de supetão no banheiro pedindo todos os perdões do mundo, ouviu as vozes das duas se aproximando da porta e afastou-se, sem poder ouvir a resposta completa que Beatriz deu a Lara. As duas saíram e deram de cara com ele entrando no corredor.

Todo mundo na mesa perguntando por vocês.

É, parece que a mancha saiu, mas agora parece que eu me mijei.

Voltaram os três para a mesa.

Então gente — Bia disse enquanto o casal que lhe acompanhava sentava à mesa — Não vou ficar aqui molhada igual uma criança por culpa do meu desastrado noivo — ela disse o segurando pelas bochechas como uma avó faria — Infelizmente vou ter que voltar para casa.

Tudo bem — André se levantou com um sorriso desajeitado, já começando a se despedir.

Todos levantaram da mesa se perguntando o motivo daquilo. Súplicas para que eles ficassem começaram a surgir, e o principal argumento usado era que ainda a noite ainda estava no início. De fato, ainda era cedo; não passava das nove horas.

Então que tal irmos lá pra casa? O que você acha, amor? — André perguntou acanhado à Beatriz.

E não é que é uma boa ideia? Terminar a nossa festinha num lugar mais privado — Beatriz confirmou alegremente.

Todos começaram a contar os seus dinheiros para pagar a conta, cada um pagando os pratos individuais e bebidas e dividindo os preços dos acompanhamentos. Benício abriu a carteira e contou o dinheiro que tinha; sentiu um nervosismo ao perceber que não seria o bastante. Tirou o cartão de crédito e pediu ao garçom que passasse sua parte no cartão, pois tinha deixado seu dinheiro em casa. Lara observou essa movimentação em silêncio.

Conta paga, todos saíram em seus carros em direção ao apartamento de André e Beatriz. A sós dentro do carro, ainda imperava o silêncio entre Lara e Benício, mas ele podia sentir que aquele era um silêncio diferente daquele que carregaram na ida ao restaurante. Esse era mais leve, embora ainda fosse um pouco soturno.

Vamos conversar agora?

A gente pode só se divertir por enquanto?

A gente vai brigar?

Não sei. Vai?

Eu não quero — disse Benício quase em um suspiro, tristemente olhando para frente seguindo os carros dos amigos. Entravam em uma rua, bem menos movimentada e mais estreita, de condomínios com sempre-verdes nas calçadas e fachadas com pinturas muito sóbrias — Eu só quero resolver isso. Pedir desculpas. De novo. Dessa vez de um jeito que você aceite. Não sei porque você faria isso, mas… Não sei. Só quero pedir desculpas.

Lara olhou para o outro lado para que ele não visse o sorriso fino que ela deu. Quando finalmente controlou o sorriso, se voltou para ele.

Tentou comprar as suas desculpas com um prato caríssimo? — ela disse com um tom capcioso.

Não. Não. Eu só queria que fosse uma noite legal, que você não ficasse se contendo por minha causa, por eu não poder pagar pra ti. Tá, e sim, eu queria te compensar pela besteira que eu fiz. Eu devia ter pensad…

Ei! Tudo bem.

Ele a olhou e viu o canto de sua boca se movendo em um delicado sorriso que o acalmou. Quando olhou novamente para frente, viu que os carros de seus amigos já estavam parando em frente ao condomínio onde André e Beatriz moravam. Benício já ia sair do carro quando sentiu Lara lhe segurar pela camiseta. Virou-se para vê-la e ela lhe tocou carinhosamente a face com as mãos e com um olhar. Os olhos dos dois se encontraram e tiveram uma íntima conversa, que nenhum dos dois ouviu, mas ambos entenderam. Quando ela saiu do carro, ele ainda não conseguia parar de sorrir e nem mesmo se mover. Ela tinha esse efeito nele.

Todos chegaram ao apartamento em casais. Logo de cara Beatriz disse que ia tomar um banho, pois não queria passar a noite naquelas condições, e sumiu no banheiro. Logo que ela sumiu Benjamim perguntou esfregando as mãos qual o cardápio de bebidas para passarem a noite.

Beber? Nada. Essa visita foi um pouco de surpresa — André disse rindo — A cerveja que tem aí não dá nem pra começar com a Andressa.

Vai deixar ele me chamar de papudinha!? — questionou divertida e incisiva a Benjamim.

Por quê? Ele mentiu?

Ora seu… — e começou a espancar as costas do esposo com tapas enquanto corriam em círculos pela sala. Benjamim então parou frente ao sofá, segurou ela e a beijou, e naquele beijo os dois caíram sentados no móvel enquanto o resto dos espectadores terminava de rir ofegante.

Mas é isso. Acho que vamos ter que comprar algo pra esquentar a noite — Lara disse, segurando a mão de Benício e entrelaçando seus dedos.

Acho que você esqueceu onde mora — Benjamim disse se levantando do sofá com um salto.

Vamos. Eu levo vocês. Sei um cantinho aqui perto — disse André, já tirando a chave do carro de dentro do bolso

Todos começaram a se dirigir para a porta do apartamento quando Lara segurou Benício.

Beni, acho melhor você ficar. A coitada da Bia vai até se assustar se sair e não encontrar ninguém, e daqui você é um dos que mais conhece ela.

Benício concordou. Aquilo era verdade afinal. Ele a conhecia a mais tempo até do que André; isso porém não queria dizer que aquilo era algo que ele queria fazer.

Todos saíram e quando a porta se fechou silenciosa, Benício se encontrou sozinho à meia-luz que dominava aquele cômodo. O ambiente inteiro passava uma energia muito severa, com suas cores escuras e ângulos retos por toda parte. Até mesmo uma pintura na parede parecia capaz de lhe ferir caso você a tocasse sem o devido cuidado. Claramente aquele era o apartamento de André. No alvoroço ninguém havia lembrado de acender as luzes e toda a iluminação provinha do que escapava do banheiro por frestas na porta e aquela que invadia pela porta envidraçada da varanda. A única companhia que tinha era o som da água caindo no cômodo ao lado, e com ela vinha o incômodo que aquela proximidade causava. Parecia que, de um momento para o outro, toda a leveza da noite tinha desaparecido. Precisava de ar, e aquele daquela sala parecia duro e quadrado como o resto do cômodo. Foi até a varanda onde a noite era pesada, apesar do luar alto e redondo que se erguia. Ao longe ainda podia ouvir o som do movimento das pessoas próximas à praia. Um cachorro latia em algum lugar, e alguns andares abaixo dava para ver a luz azulada de uma televisão escapando pela janela. Poucos instantes depois, ouviu a porta do banheiro abrir e em seguida a do quarto fechar. Uma brisa lhe entrou pelas aberturas da camiseta mas não foi o suficiente para lhe livrar do suor que grudava na sua pele naquela noite quente de Fortaleza. Um minuto depois a porta do quarto abriu novamente. Bia se colocou ao lado dele na varanda.

Se incomoda? — disse mostrando a ele um cigarro.

A casa é sua.

E o convidado também é meu. Tenho que respeitar ele, ao menos um pouco.

Ah, a gente se respeita agora? Não me mandaram esse aviso.

Sabe como é difícil achar um garoto de recados que preste hoje em dia.

Vestia uma camiseta branca do André e uma calça de moletom. O cabelo curto e moreno ainda exibia apenas as curvas dos cachos tão característicos dela, mas que mal se moviam com a brisa devido ao peso da umidade; o cabelo insistia em lhe grudar no rosto apesar de suas tentativas de afastá-lo quando finalmente simplesmente o prendeu atrás da orelha. Ela baforou uma nuvem de fumaça para cima que serpenteou um pouco acima da cabeça dos dois e logo foi embora navegando nas correntes de ar. Aquilo tudo continuava muito novo para Benício, embora já fosse velho. Acontece que essas coisas não acontecem e acabam, elas acontecem e se postergam. Acontecem no presente, passado e futuro. Acontecem assim pois, quando doamos nosso coração a alguém, pensamos no nosso desejo presente, almejando um futuro conjunto e lamentando um passado que começa a parecer cada vez mais solitário sem a presença daquela pessoa. O que acontece com esse passado, presente e futuro quando esse coração não é recebido, quando um “me desculpa, mas não” ou um “eu só te enxergo como amigo” atingem os três como uma bomba atômica? Eles não morrem, não somem, apenas são destruídos. Continuam existindo em pedaços em algum lugar, e buscar eles, pensar sobre eles remoendo sobre seus destroços, é o pior tipo de tortura ao qual alguém pode se submeter.

Você imaginou que a gente estaria aqui? — Benício perguntou.

Como assim?

Os dois se apoiavam sobre a grade baixa que circundava a diminuta varanda.

Dez anos depois. Tinha passado pela sua cabeça que a nossa amizade ia durar tanto?

Na verdade, sim. De algum jeito, eu tinha certeza que ia ter que te aturar durante um bom tempo.

Os dois trocaram um sorriso rápido e Benício voltou seu olhar para o chão. Observava a rua oito andares abaixo. Nem uma vivalma caminhava nela. Um carro entrou na rua e, tão rápido quanto surgiu, percorreu ela e desapareceu no outro quarteirão.

Lembra como a gente se conheceu? — perguntou Benício.

Eu lembro que foi na faculdade.

Restaurante Universitário. Primeira semana de aula. Eu tão perdido, assustado. Aí você chegou, sentou do meu lado…

E perguntei se você ia comer aquele doce de caju da sobremesa.

Os dois riram abertamente.

Foi. Primeira coisa que fez foi me tomar comida — Benício confirmou, nostálgico. Tinha um belo e sincero sorriso sendo exibido em seus lábios.

Não reclame.

Ao seu lado tinha uma grande amiga, mas também uma pilha de destroços. De alguma forma sobrepostos de um jeito que ele nunca conseguiria deixar de ver, mas que parara de ter importância com os anos. Nunca deixaria de ser triste e colossal aquela visão de torres, futuro, muros, presente, colunas e passado, destruídas e caindo uns sobre os outros como se tudo não tivesse passado de um castelo de cartas alicerçado em fantasias.

Parece que foi ontem. Você tava tão confiante, tão animada…

Nada — Bia gargalhou cuspindo uma nuvem de fumaça — Eu tava era me cagando de nervosa.

Tava pedindo doce de caju demais para alguém cagada de nervosa.

Benício riu sozinho enquanto Bia dava uma grande tragada no cigarro.

Sério… — ela se virou de costas para a rua, ainda apoiada sobre a grade e deixando a fumaça escapar de sua boca lentamente. O cigarro agora repousava entre os dedos, que se apoiavam no guarda-corpo de vidro. — Você não sabe o quanto foi importante pra mim — ela disse — Eu tava tão nervosa. Assustada de verdade. Passei o Ensino Médio me escondendo no banheiro na hora do intervalo, fugindo de gente que dizia que era melhor que eu; e aquela faculdade parecia que ia ser aquilo vezes dez. As pessoas pareciam muito mais arrogantes, muito mais bonitas, muito mais seguras e prontas para pisar em você só de ver que você deu a mínima abertura — e então ela olhou para ele, sorrindo com o cigarro na mão, e então Benício simplesmente congelou — Você não era nenhum galã, não era um palhaço, não era nada demais…

Obrigado pela parte que me toca — ele disse quando voltou a si.

Mas foi isso — ela disse entre risadas — Eu não tive medo de falar com você, em momento nenhum. Até hoje.

Os dois se encaram por um longo momento. Os escombros estavam ali, era triste, mas não é a toa que as maravilhas do mundo, em grande parte, são ruínas.

Você pare. Eu não quero chorar hoje.

Ora seu chorão! — ela disse o abraçando pela cintura de repente, e Benício sentiu como se fosse exorcizado naquele instante. Ele retribuiu o abraço e ela não viu as lágrimas lhe enchendo o olho.

Nesse momento o carro de André surgiu na esquina. Logo todos estavam reunidos e conversando alegremente mais uma vez, como se o caminho do restaurante até ali, bem como a saída para comprar bebidas, não passasse de um mero intervalo. Tudo havia recomeçado como se nunca houvesse parado.

Por volta das duas da madrugada, Benjamim já havia capotado no chão e ninguém conseguiu sequer movê-lo ou acordá-lo. Bia já estava totalmente alterada e começava a propor coisas pouco respeitáveis a casais monogâmicos e em certo momento se aconchegou no peito de André que, controlado como sempre, a levou para cama, deixando Andressa responsável por encerrar o litro de vodca sentada no sofá. Ela logo dormiu também, abraçada e beijando o rótulo Smirnoff. Lara havia ido no banheiro meia hora atrás e Benício suspeitava que ela estivesse dormindo. Foi confirmar e viu que estava certo. Quando ia levantá-la da privada para levá-la ao sofá, ela acordou com os olhos caídos o encarando com sono. Ele não havia bebido muito, nem tinha clima para aquilo. Estava um pouco tonto, mas nada que o impedisse de andar em linha reta. Ela o segurou pela face com as duas mãos e o beijou. Tinha gosto de cerveja e salgadinho de queijo.

Vamos dormir — convidou Benício.

Lara assentiu com a cabeça e um murmúrio, disse que apenas lavaria o rosto. Enquanto ela se recuperava, Benício voltou à sala. A porta da varanda continuava aberta e um vento frio, bem mais gelado e feroz do que a brisa de mais cedo, adentrava impiedoso. Ele seguiu em direção à porta e, quando ia fechá-la, resolveu dar uma última olhada naquela noite. Ainda sem estrelas. A lua já estava indo em direção ao horizonte posar, seu turno estava acabando. Ao redor, tudo era silêncio. Uma única luz estava acesa em um condomínio mais acima na rua, mas fora isso, não havia indícios de que houvesse sequer outra pessoa habitando aquele mundo. Ele ergueu o queixo e fechou os olhos. O vento lhe chicoteava a face e um calafrio percorria seu corpo. Sentia o cheiro da noite como se o vento lhe trouxesse a escuridão para dentro das narinas. A lua em um céu noturno sem estrelas era a mais sublime representação da solidão. Não podia dizer que não havia beleza naquilo. Vagou muito tempo entre ruínas sentindo isso, a escuridão da noite preenchendo seus pulmões, indo ao sangue, seu ser em completa solidão em busca dos restos de algo que nem mesmo chegou a existir.

Quando abriu os olhos, ao seu lado estava Lara, os olhos fechados e na mesma posição que ele. Experienciava as mesmas coisas? Ela não sabia sobre o que ele sentia por Bia. Ele não achou sensato que ela fosse informada sobre isso, e quanto mais a relação entre aquelas seis pessoas se estreitava, menos ele sentia vontade de trazer isso a tona. Um leve déjà-vu lhe veio com a imagem de Bia sobposta à de Lara, pois estavam no mesmo lugar apenas separadas por algumas horas. Uma diferença gritante lhe saltava aos olhos; não esses dois olhos castanhos de vira-lata que ele tinha, mas os mesmos olhos que lhe permitiam ver as ruínas que projetava em Bia. Lara não tinha ruínas. Era uma construção simples, mas bela em sua simplicidade. Quando passado-presente-futuro de Benício com Bia desmoronou, a construção ciclópica caiu como um palácio em um terremoto. O de Benício com Lara estava de pé, uma casinha de telhado vermelho com uma janela e pintada em cores pastéis onde não havia sequer uma telha lascada. Passado, presente e futuro eram claros e bonitos e estavam ali, alicerçados em sua frente

Eu amo ela”.

E como se ouvisse os pensamentos de Benício, Lara abriu os olhos na direção dele. Se aproximou como se fosse beijá-lo, mas desviou a boca e apenas o abraçou.

Por que você faz isso? — ele disse, rindo.

Gosto da cara de idiota que você faz.

Ele riu com os braços envolvendo a cintura dela e os dois ficaram ali, se abraçando e sorrindo, observados por ninguém a não ser a lua.

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