No canteiro tinha um menino
E meu ônibus deu o prego no meio de uma avenida, e o pior, a alguns quarteirões da minha casa. Não me orgulho de dizer o quanto xinguei o motorista e mandei, junto com uma pequeno multidão enfurecida, ele tirar o ônibus dali, mesmo que tivesse que descer e empurrar o ônibus. Muito plácido ele acendeu um cigarro preso pelos lábios ocultos por um bigode volumoso e afastou todos os impropérios com um gesto da mão, como se não afastasse nada mais que a fumaça do próprio cigarro.
Ao perceber que aquela gritaria de uma pequena multidão enfurecida simplesmente não levaria a nada e que aquele ônibus não se moveria mais um metro que fosse, a multidão começou a baixar o volume de suas vozes e conversar entre si, em vez de dirigir suas palavras ao chofer.
Aquele papo de "que absurdo" e "o transporte público de fortaleza é uma merda" sob o sol escaldante das duas da tarde não me chamou muita atenção e não vi motivos pra ficar ali. Especialmente com a inexistência de sombras para aplacar o sol. Eu morava a uns quinhentos metros adiante e ir caminhando levaria menos tempo do que aguardar uma nova condução. Então fui me afastando gradativamente do grupo até aqueles murmúrios repetitivos se perderem no barulho dos carros que passavam.
Minha vista se perdia à frente. Se o sol era escaldante, a calçada devia estar infernal e o asfalto não poderia se comparar a nada mais que um poço de lava e enxofre que ondulava o ar à distância. Minha testa já estava úmida e sentia gotas de suor correrem meu tronco. A ideia de caminhar até em casa parecia mais absurda a cada passo.
Movi meu olhar ao canteiro central, onde árvores esparsas projetavam a sombra de suas copas ralas no chão. Convidativas sombras, que mesmo cheias de falhas, como cobertores velhos, eram mais afáveis que o cáustico sol sobre a minha cabeça.
Existem cenas com a capacidade de tirar a gente de dentro de nós mesmos e nos capturar, e foi ali, namorando as sombras do canteiro central, que vi uma cena como essa. Um garoto montado em uma bicicleta infantil, usando o próprio pé de apoio para mantê-la de erguida, segurava um carrinho térmico que anunciava em sua lateral a venda de garrafas d'água. O garoto parecia aflito e olhava de um lado para o outro como se procurasse algo que chegaria mais cedo ou mais tarde e que poderia vir de qualquer lugar.
"Como a morte", pensei com um arrepio.
Quando meu pensamento calou a boca me vi atravessando a pista entre dois carros para chegar até o canteiro central. Caminhei alguns passos em direção ao garoto.
— Não é melhor vender isso ali na sombra daquela árvore? Esse sol tá matando um.
A minha voz parece acordar o garoto de um transe. Apesar de parecer tão alerta aos seus arredores, sequer havia notado minha aproximação, ou talvez não tivesse se importado o suficiente para dar atenção a ela.
— Oi? Não moço. Isso aqui não é meu — riu como se o que eu tivesse dito fosse muito absurdo.
— Não? E o que tá fazendo aqui?
— Só vigiando ele pro meu pai. Ele teve que sair pra conversar com um amigo… Ele disse que era amigo, mas parecia bem irritado.
Essa história me pareceu estranha.
— Não acha melhor ir procurar ele? O sol ainda vai esquentar um pouco e olha que ele já está bem quente.
— Não posso deixar o carrinho só, tio. Tá maluco!? Pessoal pode vir aqui e roubar tudo as água. Sabe como é. Não dá pra confiar em ninguém.
— Ah sim… Sei… E pra onde eles foram? Se quiser eu posso ir olhar pra você?
— Nossa, tio! Sério!? Ele foram ali naquela rua — disse apontando pra uma ruela pouco atrás, do outro lado da rua. Tão estreita quanto sombria.
Eu olhei a rua e senti um arrepio. Nada que parecia vir daquela rua parecia ser bom. Parecia uma fenda nas paredes da cidade que levava a algum lugar paralelo pronto a devorar quem quer que fosse.
Imprudentemente e me deixando levar pela minha curiosidade gerada pela situação, eu atravessei mais uma vez a rua. A realidade parecia ter sido engolida por aquela fenda e nenhum carro se via à direita e nem à esquerda.
Do outro lado caminhei pela calçada até a rua que o garoto me indicou. Olhei pra ele achando que ia o ver olhando em minha direção como se eu fosse um herói destemido, mas ainda parecia que eu sequer existia para ele; olhava apenas para os arredores. Admito que isso minou minha vontade de seguir. Pensei em dar meia volta e caminhar em direção a minha casa. O garoto nem perceberia mesmo. Mas aí pensei naquela criança de uns 10 anos ali no sol da tarde, com a pele brilhando de suor e sentada sobre a bicicleta esperando um pai que não voltava. Segui adiante. No pior dos casos eu daria um belo sermão naquele irresponsável que deixou o filho daquela maneira.
Virei na rua e ela estava morta. Era uma rua ainda mais estreita do que parecia, era possível tocar as casas dos dois lados apenas abrindo os braços, e não se via uma alma viva durante toda a extensão da via, que seguia em declive entortando para a esquerda e saindo de vista. Todas as portas de madeiras fechadas e as paredes coloridas machadas pareciam muito soturnas. O cadáver a alguns metros dos meus pés ajudava com essa impressão.
Um pequeno rio de sangue ainda úmido escorria para dentro da rua empoçando em um buraco no chão de terra batida. O corpo estava de peito pra baixo e tinha uma camisa de botões aberta listrada que estava empapada de sangue. O rosto era o pior. Parecia que ainda agozinava, mesmo que o corpo sequer respirasse.
A cena me tirou o fôlego e esqueci como se respira. Quando reaprendi tive que prender o ar; caso não, vomitaria. Minhas pernas fraquejaram e usei uma parede como apoio pra me manter de pé e me aproximar tentando reconhecer o rosto que nunca tinha visto na vida. Seria o pai do garoto? O amigo? Nenhum dos dois?
Saí do beco e pareci atravessar uma membrana. Aquele corpo e aquela rua ainda existiam, eu sentia, mas pareciam muito distantes, quase um sonho. Ergui o olhar. Finalmente o garoto olhava pra mim.
Os olhos muito vivos faiscavam e a preocupação era bem visível, mesmo dali de longe. Olhei novamente pra dentro da rua e o corpo estava ali. Não era fantasia, não era outro mundo. Era um corpo, uma vida que se fora e outra que ficava e esperava, assim como todas as vidas. Essa continuaria esperando mais que todas.
Voltei para o canteiro central e fui em direção ao garoto com um olhar destruído que ia demolindo o dele cara passo que me aproximava. No fim me restou uma sombra do moleque vívido que eu tinha visto antes. Como se antecipasse más notícias, e como se tivesse acostumado a antecipá-las, ele me olhava de baixo pra cima com a mão trêmula agarrada nos braços do carrinho cheio de garrafas d’água.
— Ele tava lá, tio?
— Não… Tava sim. Falei com ele bem rápido. Conversei. Disse que você ainda tava esperando e ele riu — eu disse dando a gargalhada mais falsa e dolorida de toda minha existência — Tu entendeu tudo errado. Ele disse que não ia voltar agora, que era pra tu voltar pra casa.
— Sério? — o garoto parecia confuso. Me olhava tentando entender e olhava para o a rua trás de mim.
— Sério! Tenta lembrar. Não foi isso que ele disse?
— Não… Eu acho… Ele disse que ia demorar?
— Foi o que falou. Disse que não precisava vigiar o carrinho. Que ia ter fazer uma viagem e que quando voltasse ia trazer muito dinheiro que conseguiu, mas que precisava sair agora e não tinha tempo de se despedir. Ele parecia muito feliz — senti um arrepio quando disse isso.
— Bom, ele disse que tinha um tio muito rico em outro estado. Será que esse tio vai dar dinheiro pra ele?
— Como é o nome do teu tio?
— Hernando.
— É esse mesmo! Esse mesmo! Esse que vai ajudar vocês. Não precisa mais olhar o carrinho. Vai pra casa vai.
Nessa hora o rosto do garoto se iluminou. Ele montou já bicicleta e saiu subindo a avenida. Ainda consegui ouvir ele dizendo “a gente devia fazer um churrasco quando ele voltar” e aquela esperança me destruiu mais que qualquer defunto. Tive medo que ele visse o corpo na ruela e descobrisse minha mentira, mas ele não viu. Apenas passou direto acelerando cada vez mais.
Menti. Fui covarde e usei da pior maneira pra tirar aquela criança da minha frente. Talvez se tivesse dado uma surra nela não a machucaria tanto. Não sei como foi quando ele chegou em casa, ou sequer se tinha alguém lhe esperando lá. Agarrei esse sorriso iluminado e o imprimi estático, e na minha mente ele nunca mais vai precisar desse carrinho, que agora eu vejo toda vez que vou e volto do trabalho. Cada vez mais velho, cada vez mais corroído, e provavelmente com as águas apodrecidas lá dentro.
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